Estórias com Propósito: Rita Romão (Fundação EDP) | Uma viagem de esperança
Ia de férias para a Tunísia, mas, em vez disso, só tive de aceder ao repto lançado pelo meu marido: «E se em vez de irmos de férias depois de amanhã, fossemos até à Polónia ajudar?» Mas esta não é a minha história de propósito.
Por Rita Romão
Não é a minha história de propósito. É a história da Dasha, que, aos 10 anos de idade, viu a sua escola ser destruída nos bombardeamentos à Ucrânia, apanhou um comboio juntamente com a sua mãe, de apenas 27 anos, para atravessar a fronteira da Polónia, assegurando a vida do “Cena”, um porquinho-da-índia, enfiado numa gaiola que ela segurava firmemente, como se da jóia mais rara se tratasse. É a história da Katya, de 15 anos, e da sua mãe, Olena, que fizeram o mesmo. Cruzaram-se no dito comboio e, à saída, acreditaram num casal de portugueses que lhes prometeu segurança numa terra a mais de três mil quilómetros de distância de casa. É também a história do Serhiy, Yuriy, Denys, Viktor, Andriy, e das três mães, que conheci, desta feita, na Estação da Varsóvia Este, acedendo a um pedido que me chegou de uma amiga, que tinha passado a alguém, que deu o meu número (porque as regras da confiança assim o ditam), que por sua vez passou ao Tom que, também sem me conhecer, acreditou quando lhe prometi que traria as três mães e os seus cinco filhos, que estavam à sua guarda, para Portugal, em segurança, e que arranjaria um local onde pudessem todos ficar juntos.
É ainda a história da Vitória e da sua filha, que só queria conhecer Paris. Do Danyl e da sua mulher que, com quase 70 anos, decidiram vir ter com a sua nora, que já cá estava; da Anastacya e dos seus dois filhos, de 10 e 12 anos; da Krystyna e do seu bebé com apenas um mês. Todos eles têm um denominador comum: deixaram para trás a família – pais e maridos, na sua grande maioria – a lutar pela defesa da liberdade a favor de todos nós.
Todos eles, depois da guerra lhes tirar tudo, foram capazes de confiar nos portugueses que a vida lhes colocava à frente e, mesmo não falando uma palavra de português, mesmo pouco conhecendo deste rectângulo no fim da Europa, conseguiram unir-se na esperança de um futuro melhor.
É também a história da Isabel, que criou um hub de bens na escola dos filhos, nos arredores de Varsóvia, de onde uma rede de camiões partia para o lado da fronteira em guerra. É a história dos imensos voluntários que se juntavam na estação de comboio de Varsóvia, vindos de todos os lados, com coletes de sinalização “I speak Russian”/“I speak Ukrainian”/“I speak Spanish”… Ou da Carlota, que, com os amigos, levantou um fundo de 20 mil euros para viagens de avião e que trocou a vida de consultora, em Lisboa, para passar a dormir na estação central da capital da Polónia, entre as chegadas de comboio da fronteira.
É a história do grupo de jovens espanhóis que, quando foram confrontados com a guerra durante o seu programa de Erasmus, entenderam que, ao invés de estudar, seriam mais úteis a montar uma barraquinha na estação central com agenciamento de vaivéns Varsóvia-Barcelona, para dar abrigo a mais uns quantos em necessidade.
É igualmente a história de todos os que não puderam – ou não souberam – vir, como o Oleksandr, que me perguntou ao telefone. “When are you going? We are under bombings now… we cannot leave! Can you wait? Do you still have space for me?” O número de lugares disponíveis para os diferentes destinos era, por aqueles dias em Varsóvia, a moeda de troca mais valiosa.
Mas esta história começa quando o Francisco e o João decidem que a carrinha escola de surf da qual são sócios, em vez de transportar alunos, nessa semana iria à Polónia transportar refugiados da Ucrânia e, com isso, mobilizam família e amigos para os ajudarem nessa empreitada.
A minha história era bem mais simples. Eu ia de férias para a Tunísia, mas, em vez disso, só tive de aceder ao repto lançado pelo meu marido: «E se em vez de irmos de férias depois de amanhã, fossemos até à Polónia ajudar? Há um grupo de sócios na empresa que vai, podemos juntar-nos.» O “depois de amanhã” não era figura de estilo. Falámos na quarta-feira; partiríamos na sexta-feira seguinte, com o carro carregado até ao último espaço disponível, entre fraldas, latas de conservas e medicamentos, porque a bondade dos que se quiseram juntar a ajudar foi ainda maior do que a nossa determinação.
A generosidade que testemunhei em todos os seres humanos, dos que confiaram aos que foram confiáveis, ao longo dos sete dias da viagem, e dos vários meses que se seguiram, em conseguir roupas, comidas, escolas, casas, trabalho, tempo e afectos para todos refugiados que trazíamos, foi verdadeiramente comovente. De todo lado sobejou ajuda. De todo o lado se abriram portas.
Lembrando que, não obstante as dificuldades, o mundo dá sempre espaço à beleza e à alegria, conseguiríamos ainda uma pausa na dureza da viagem de regresso para um momento verdadeiramente épico. Cumprindo o sonho da filha da Vitória, lançamo-nos rumo a Paris, para um “detour” com direito à tradicional fotografia de grupo na Torre Eiffel!
Guardo tanto desta viagem que o pouco espaço destas páginas não o comporta. Deixo-vos as palavras sábias da Irmã responsável de um reputado colégio “alfacinha” que, sem me conhecer, cedeu espaço para que a Dasha e a Katrina pudessem reiniciar os seus estudos condignamente: «Mas está espantada? Já tem idade para saber que a boa vontade é capaz de operar verdadeiros milagres.» Nota: Excertos da viagem entre os dias 20 e 27 Março de 2022, Lisboa – Varsóvia – Lisboa.
Este artigo foi publicado na edição de Abril (nº. 160) da Human Resources.
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