A 1 de Agosto entra em vigor o Regulamento da Inteligência Artificial. Já o conhece? E que impacto laboral terão as obrigações e proibições?

Por Cristina Romariz, advogada da área de Laboral da Cuatrecasas.

 

Depois de um processo legislativo difícil e moroso, foi na sexta-feira, 12 de Julho, finalmente publicado no Jornal Oficial da União Europeia o Regulamento da Inteligência Artificial (IA). O regulamento, que entrará em vigor já a 1 de Agosto, dá assim os primeiros passos num calendário de aplicabilidade faseada, em que se fixam prazos diferentes para exigir o cumprimento das obrigações nele estabelecidas.

Mas que impacto tem o Regulamento da IA no âmbito laboral? Que obrigações impõe aos empregadores e como afecta as práticas laborais?

O Regulamento de IA está construído com base no risco que pode resultar da utilização dos sistemas de IA, definindo, a partir dessa avaliação, os requisitos e as obrigações que impendem sobre os vários intervenientes (prestadores de sistemas de IA, importadores, distribuidores, responsáveis pela implantação). Assim, o regulamento distingue entre práticas proibidas de IA, por acarretarem um risco inaceitável; sistemas de IA de risco elevado, que envolvem um perigo significativo de causar danos à saúde, à segurança ou aos direitos fundamentais; sistemas de risco limitado e sistemas de risco mínimo. De uma forma geral, quanto maior for o risco, mais reforçadas serão as obrigações.

Com relevância laboral, encontramos nas práticas de IA proibidas, por exemplo, a utilização de sistemas de IA concebidos para reconhecer emoções nos locais de trabalho, bem como a utilização de sistemas de categorização biométrica que classifiquem individualmente as pessoas com base na sua biometria para deduzir ou inferir dados sensíveis, como sejam a raça, a filiação sindical, as convicções religiosas ou filosóficas, ou a orientação sexual.

Atendendo ao impacto que podem ter nas perspectivas de carreira, na subsistência das pessoas e nos direitos dos trabalhadores, o Regulamento da IA classifica como sendo de risco elevado os sistemas de IA utilizados nos domínios do emprego, da gestão de trabalhadores e do acesso ao emprego por conta própria. Nos termos do regulamento, tratam-se de sistemas de IA que podem intervir em qualquer momento do ciclo de vida da relação laboral, nomeadamente para efeitos de recrutamento e selecção (designadamente para anunciar vagas, analisar e filtrar candidaturas e avaliar candidatos); para a tomada de decisões que afectem os termos da relação de trabalho, a promoção ou a cessação do próprio contrato, a distribuição de tarefas com base em comportamentos individuais, traços ou características pessoais; ou para monitorizar e avaliar o desempenho e a conduta dos trabalhadores.

É perfeitamente compreensível a especial atenção que a aplicação de IA mereceu no âmbito laboral, atendendo a que, por um lado, estes sistemas podem perpetuar padrões históricos de discriminação (seja no recrutamento, seja na gestão quotidiana da relação laboral), e, por outro lado, permitem um mais fácil (e intrusivo) controlo sobre o desempenho e comportamento dos trabalhadores, podendo comprometer os seus direitos de personalidade, como seja à privacidade ou à protecção de dados pessoais.

No entanto, esta classificação dos sistemas de IA no âmbito laboral como sendo de risco elevado poderá ser excepcionada, caso não exista um “risco significativo” de causar danos à saúde, à segurança ou aos direitos fundamentais dos trabalhadores, nomeadamente se não influenciarem significativamente a tomada de decisões. O conteúdo desta derrogação é ainda pouco claro, mas a Comissão Europeia irá desenvolver orientações específicas, incluindo uma lista de exemplos práticos de utilizações de sistemas de IA de risco elevado e sem risco elevado.

Assumindo que o trabalho é também um domínio de aplicação do Regulamento de IA por excelência, que obrigações são impostas aos empregadores?

Para além de outras obrigações destinadas aos responsáveis pela implantação de um sistema de IA de risco elevado (p. ex., tomar medidas técnicas e organizativas adequadas para garantir que os sistemas de IA são utilizados de acordo com as respectivas instruções de utilização, ou garantir que as tarefas de supervisão humana são executadas por quem tenha adequadas competências), merece destaque o dever de informar os trabalhadores e os seus representantes quando seja implementado ou utilizado um sistema de IA de risco elevado no local de trabalho.

Quanto ao cumprimento do dever de informação, o Regulamento da IA remete para as regras e os procedimentos estabelecidos na legislação e nas práticas da UE e nacionais nesta matéria. Ora, devemos ter presente que, desde a entrada em vigor das alterações ao Código do Trabalho promovidas pela Agenda do Trabalho Digno, em 2023, temos já uma obrigação nacional de informar os trabalhadores individualmente (e bem assim, a comissão de trabalhadores e os delegados sindicais) quando sejam utilizados algoritmos ou sistemas de IA que afectem a tomada de decisões sobre o acesso e a manutenção do emprego, assim como as condições de trabalho, incluindo a elaboração de perfis e o controlo da actividade profissional. Em concreto, a lei laboral impõe o dever de comunicar os parâmetros, os critérios, as regras e as instruções relativos a esses algoritmos ou sistemas de IA.

Para além desta importante obrigação, o regulamento de IA impõe um dever formativo, devendo os empregadores tomar medidas para garantir que os seus trabalhadores e outras pessoas envolvidas na utilização de sistemas de IA em seu nome têm conhecimentos suficientes nesta matéria. Com efeito, o regulamento preocupa-se bastante com o que designa por “literacia no domínio da IA” e com a sua promoção a todos os níveis da sociedade.

Acresce que, em determinados casos, poderá ainda impor-se aos empregadores a realização de uma avaliação de impacto sobre os direitos fundamentais antes de implementar um sistema de IA.

Perante um regulamento com forte impacto laboral, os empregadores devem adoptar um plano de acção que lhes permita perceber, desde logo, se o Regulamento da IA se lhes aplica e determinar o seu papel no caso concreto (responsável pela implantação? prestador de sistema de IA?), definindo as obrigações associadas ao nível de risco dos sistemas que emprega. Será necessário auditar que algoritmos e sistemas são utilizados no âmbito laboral, tarefa só por si complexa quando muitos dos empregadores desconhecem os próprios sistemas que utilizam.

Para além da “mão pesada” perante o incumprimento (o Regulamento da IA estabelece coimas que podem alcançar os €35 milhões ou 7% do volume de negócios anual), e de possíveis pedidos indemnizatórios por violações dos direitos fundamentais (p. ex., discriminação algorítmica), os empregadores devem preocupar-se, sobretudo, em navegar calmamente a transformação algorítmica da gestão do trabalho. O papel transformador da IA (também) ao nível dos RH é incontornável, e as empresas que saibam navegar nestes mares terão, seguramente, uma vantagem competitiva.

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