A pandemia e os (novos) desafios na Gestão de Pessoas: o que vem aí

«Os colaboradores cada vez mais esperam ser tratados como consumidores, e as empresas terão de actuar como prestadores de serviços, focando-se no que fazer para mantê-los produtivos, conectados e satisfeitos para realizar seu trabalho num mundo em mudança.»

Por Silviana Freitas, Responsável dos Recursos Humanos do Grupo Impacting

 

Estamos actualmente a lidar com um novo normal, em que as medidas de higiene, a distância social, os testes regulares e outras soluções ainda por definir irão desenhar o nosso futuro próximo.

Pessoalmente, a pandemia deixou-me os nervos em franja. Enquanto profissional de Recursos Humanos, mais do que triplicou os meus cabelos brancos num curto espaço de tempo. Mas, como tudo tem um lado positivo, tornou mais visíveis as mudanças em curso no mundo do trabalho, acelerando-as a um maior ritmo, aguçando-me assim a curiosidade e a vontade de lá chegarmos o melhor preparados possível.

Já todos sabemos que o trabalho remoto veio para ficar, por várias razões, sendo o equilíbrio entre a vida pessoal e profissional apontado como o maior benefício, sobretudo pelas gerações mais novas.

Este trabalho remoto não poderá ser uma realidade em todos os negócios, e nem sempre será aplicável a tempo inteiro, pelo que os designados regimes mistos (entre trabalho remoto e trabalho presencial) também serão tendência num futuro próximo.

Na verdade, com a crescente expansão da inteligência artificial, que nos permite estimar que em 2025 as máquinas vão ultrapassar os humanos nos locais de trabalho em termos do número de tarefas que vão desempenhar, os desafios para o mundo do trabalho já eram imensos.

Todavia, a pandemia veio acelerar todo este processo, levando-me a destacar alguns aspectos a ter em consideração enquanto profissional de Recursos com gosto por antecipar cenários.

 

Quatro processos que não vamos poder ignorar

  1. Digitalização de processos

Ao longo do período de confinamento, a adaptação algo forçada das tarefas e processos de trabalho por via remota foi ocorrendo, mas urge repensar e, se necessário, redefinir esses processos de forma optimizada e estratégica para as empresas. Termos conseguido recrutar alguém remotamente e fazer o seu onboarding não significa que tenha sido a melhor forma em termos da experiência do colaborador. Do mesmo modo, a formação online dada aos colaboradores pode ter tido bom feedback mas o processo poderá ser mais ágil e com mais resultados.

Importa salientar que o facto de algo ter corrido bem durante os tempos que vivemos, não significa que decorrerá sempre bem, pois o que funciona durante um curto (e excepcional) período de tempo, não quer dizer que funcione no futuro, pelo que há que continuar a listar, rever, digitalizar e automatizar o mais possível todos os processos.

 

  1. Adaptação das instalações da empresa

Todos sabemos quais as recomendações a cumprir para garantir a saúde de todos nos espaços de trabalho, mas teremos que ir mais além, procurando preparar os espaços das empresas para as novas necessidades dos colaboradores no futuro. Existindo colaboradores em regime de trabalho remoto ou mesmo em regime misto, poderá deixar de fazer sentido as instalações terem secretárias para uso exclusivo de cada colaborador, ocupando-se assim a que estiver livre no momento, conceito que tem vindo a ser apelidado de hot desking.

Neste âmbito, têm sido apontadas como boas práticas a junção de vários modelos, nomeadamente open-space, salas fechadas de diferentes tamanhos, cabines telefónicas e de videochamadas e as comuns zonas de convívio para as pausas durante o trabalho. A premissa de base com esta reorganização é alcançar espaços que estimulem a colaboração, o bem-estar e o lazer entre os colaboradores, garantindo privacidade quando necessário.

A grande mudança aqui será que os colaboradores deixarão de ter um local de trabalho específico para terem uma série de espaços de trabalho, cabendo às empresas garantir a sua segurança física e digital em todos. Passaremos, assim, a deixar de proporcionar um espaço que os colaboradores sentem como exclusivamente seu, para proporcionarmos um conjunto de experiências que lhes possibilite trabalhar à sua maneira e no seu próprio ritmo, melhorando a produtividade e a experiência de trabalho.

 

  1. Preparar as pessoas: colaboradores, lideranças, e restantes stakeholders

Este ponto surge aqui com o número três mas pela sua importância talvez fizesse sentido ser o primeiro. Nós somos criaturas de hábitos e a mudança muitas vezes assusta-nos e paralisa-nos, faz parte! Para melhor prepararmos as mudanças que o presente/futuro trazem, é imperativo investirmos tempo com as pessoas, começando simplesmente por escutá-las. Para tal, teremos de ajustar os canais de comunicação e garantir uma recolha constante de feedback, já que as pessoas nem sempre se irão encontrar fisicamente e ter a oportunidade de conversar e esclarecer percepções enquanto tomam um café.

Simultaneamente ao processo de ouvir as pessoas, teremos que planear a comunicação de cada mudança: o que vai mudar, porque vai mudar, quando vai mudar, e preparar cada mudança com recurso a formação, feedback contínuo, documentalização e avaliação conjunta da mudança implementada.

Estas premissas serão válidas para qualquer das relações existentes nas organizações (por exemplo entre colaboradores, entre colaboradores e clientes) mas a relação entre líderes e liderados assume um destaque particular. Como gerir e coordenar remotamente as pessoas? Deverão ser certamente equacionados programas de capacitação das lideranças e, provavelmente, teremos líderes em extinção: aqueles que apenas controlam os tempos de trabalho e não os resultados obtidos.

 

  1. Desenvolver uma cultura organizacional virtual

Assumindo-se a cultura organizacional como “a forma como se fazem as coisas” em cada empresa, e sendo esta mais importante que os procedimentos estabelecidos, facilmente se compreende que a cultura nos regimes de trabalho remoto e misto assume um papel ainda mais importante.

Efectivamente, os colaboradores podem estar localizados no mesmo edifício e sentirem-se desconectados e isolados no meio de muitos outros, assim como é possível (e cada vez mais comum) experienciar sentimentos de inclusão sem estarmos fisicamente próximos.

Ao passar a virtual,  a cultura organizacional terá de se tornar algo que se vê e sente de forma regular, quer fisicamente no escritório, quer de forma remota, e tal exige um plano de desenvolvimento de uma cultura virtual interactiva. Tratar-se-á cada vez mais de fazer com que os colaboradores se sintam incluídos na vivência da visão, missão e dos valores da empresa e não tanto nas expressões/símbolos de cultura, que encontramos fisicamente no escritório (jogos, snacks).

 

A forma como as empresas se irão ajustar às mudanças que vivemos e que antecipamos definirá o seu maior ou menor sucesso. Esta é a conclusão óbvia, e queria destacar, mais uma vez, o papel da tecnologia neste processo, já premente antes da pandemia.

Segundo Jacob Morgan, a tecnologia é fundamental para criar uma experiência do colaborador positiva, já que a capacidade de colaborar, comunicar, ser produtivo e ter as ferramentas certas para trabalhar estão estreitamente relacionadas com a tecnologia da empresa. Morgan aponta ainda a tecnologia obsoleta como um dos factores de desmotivação dos colaboradores, dado que quando os colaboradores não conseguem aprender facilmente ou necessitam de duplicar o trabalho uns dos outros sentem-se frustrados.

As organizações terão assim de apostar cada vez mais na melhor tecnologia para servir os utilizadores/ colaboradores, exigindo-se aqui um trabalho conjunto entre os profissionais da área tecnológica, os responsáveis pela gestão das instalações, os Recursos Humanos e os próprios colaboradores. Temos, então, uma outra variável para medir o engagement do colaborador: nível de satisfação com as tecnologias utilizadas na empresa.

Na realidade, se pensarmos que, enquanto consumidores, esperamos fazer um ou dois cliques para comprar algo, poucos mais para devolver e, ainda, receber notificações no telemóvel sobre o estado do processo, facilmente depreendemos que quando vamos trabalhar, estas expectativas do consumidor passam a ser expectativas do colaborador.

Os colaboradores cada vez mais esperam ser tratados como consumidores, e as empresas terão de actuar como prestadores de serviços, focando-se no que fazer para mantê-los produtivos, conectados e satisfeitos para realizar seu trabalho num mundo em mudança.

 

 

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