Consulting House. Coaching na caverna: Os enviesamentos cognitivos e o parto do conhecimento

Na sua Alegoria da Caverna, Platão descreve um grupo de pessoas aprisionadas numa caverna, de face voltada para a parede do fundo.

Nessa parede os indivíduos vêem sombras de objectos e acontecimentos que ocorrem fora da caverna, projectados por uma fonte de luz externa. Sem terem acesso ao que existe e acontece fora da caverna, a sua percepção da realidade é a única que conhecem. O seu conhecimento é construído com base em sombras e limitado pelos sentidos dos próprios.

Platão acreditava que a razão seria a única forma de apreender a verdadeira natureza dos objectos e acontecimentos do mundo, e que a educação para a razão seria o processo de nos superiorizarmos à nossa natureza através do pensamento estruturado.

 

Enviesamentos cognitivos
A ciência demonstra que Platão estava certo no impacto da percepção sobre o pensamento. Estudos sobre a cognição humana, quer na forma de entender objectos quer de entender pessoas e situações sociais, demonstram que alguns mecanismos de processamento automático de informação baseados nos sentidos determinam a conclusão de um processo de pensamento ainda antes dele acontecer.

Um homem que aborde uma mulher em público e lhe peça o número de telefone para agendar um encontro tem muito mais probabilidade de sucesso se tiver consigo uma guitarra, em vez de um livro ou um computador. Uma pessoa que tenha um copo de bebida alcoólica na mão será julgada como menos inteligente do que se não tiver nada na mão, em situação de intercâmbio social.

O que Platão não previu foi que a percepção não é uma tábua rasa dada pela nossa natureza, que regista objectivamente os acontecimentos. A percepção é ela própria influenciada por aprendizagens sociais e não age como um mecanismo de recolha de informação, mas sim como um processamento automático que enviesa os resultados. Precisamos de saber o que é uma guitarra e uma bebida alcoólica para accionar os julgamentos acima descritos; e isso são aprendizagens sociais. Todos sofremos de enviesamentos cognitivos, mecanismos que misturam percepção sensorial com processamento automático de informação para chegar rápido a decisões e acções.

Há mais de duzentos tipos de enviesamentos cognitivos identificados pela ciência. Isto significa que não temos qualquer esperança de conseguir produzir aproximações progressivas à realidade (a “verdade” filosófica de Platão) confiando apenas na razão, porque os pressupostos sobre os quais raciocinamos estão contaminados à partida por mecanismos automáticos inconscientes.

A razão é uma ferramenta romba que não corta a raiz da percepção.

 

O parto do conhecimento
Sócrates propôs a maiêutica como forma de adquirir um conhecimento mais exacto da realidade. A maiêutica é um processo para fazer o “parto” do conhecimento, do acesso à verdade que existe em potencial em cada pessoa. Este método consiste em seguir um conjunto de perguntas – o método Socrático – para que a pessoa se aperceba primeiro dos limites do seu conhecimento e depois aceite abrir a mente a novas formas de pensar descobertas por si. Estas questões são colocadas por outro que não esteja limitado pelos mesmos mecanismos de pensamento, para gerar informação que modifique o modo de pensamento. Sócrates seria assim um precursor do coaching enquanto método de apoiar alguém a encontrar por si o caminho para a verdade.

Mas há um problema. Os filósofos sofrem de optimismo crónico sobre o valor da razão na qualidade do pensamento e comportamento. Quem quer que tenha tentado convencer amigos ou familiares a abandonar uma crença partilhando informação científica, factos objectivos e dados matematicamente categorizados, sabe do que estou a falar. As pessoas rejeitam os factos para proteger as suas crenças.

Na verdade, o que as pessoas estão a proteger não são as suas crenças em geral, são as suas crenças sobre si. Se acredito que sou inteligente/boa mãe/cidadão exemplar, e alguém me apresenta factos que comprovam que o que faço não é coerente com aquela crença, rejeito os factos para poder manter uma boa imagem de mim próprio. E deito fora o bebé com a água do banho.

Ao proteger o meu ego inviabilizo a possibilidade de ser diferente. Ao proteger o que sou hoje impeço-me de crescer. O processo de desenvolvimento e transformação pessoal exige que eu seja capaz de me distanciar do que sou, faço, penso e sinto hoje, para poder ser sentir, fazer e pensar de acordo com a pessoa que quero ser.

 

O papel do coaching psicológico
O papel do coaching é ajudar o outro a parir a pessoa que quer ser. Mas acreditar que conseguimos fazê-lo com um processo socrático de perguntas racionais, uma sequência de passos de um modelo rígido, uma série de truques de comunicação, um modelo que explicamos à pessoa para ela raciocinar de forma diferente sobre o seu caso, é cair na doença dos filósofos. A racionalidade não produz transformação. A transformação acontece quando a pessoa vê a sua situação de forma diferente. É porque agora vejo outra realidade na realidade existente que sinto, sou e ajo diferente.

A transformação acontece quando alteramos o automatismo da percepção. O processo de transformação busca identificar e modificar o automatismo que mantém a pessoa presa ao ego actual e a impede de mudar-se.

O coaching psicológico é uma disciplina que parte do entendimento dos mecanismos de funcionamento da percepção, cognição e emoção humanas, para criar um contexto de transformação em que o indivíduo tenha a máxima oportunidade de transformar-se.

Disse-me um CEO durante a avaliação final do nosso processo de coaching: «Na verdade não atingimos alguns dos objectivos que coloquei no início, mas o que atingimos como subproduto de não ter atingido esses objectivos foi muito mais valioso. A pessoa que queria esses objectivos transformou-se e os objectivos iniciais reformularam-se “por si”.»

 

O lutador de rua e a meta-mente
Defendo que o método, o processo e a técnica são importantes para uma aprendizagem da arte do coaching protectora do cliente, ética e eficaz. Mas se só temos um processo, um método e uma caixa de técnicas, caímos facilmente em tribalismos que reduzem a possibilidade de impacto.

Bruce Lee explicava que três praticantes de artes marciais diferentes, observando um combate de rua, verão três combates diferentes, de acordo com a arte que dominam. Mas a luta de rua é uma realidade fluida que acontece para além das suas definições fixas. Lutador de rua desde a infância, criador de um estilo de combate eclético e eficaz, e estudante de filosofia, Bruce Lee lembra-nos que há um momento em que temos de esquecer o método que já integrámos e dedicar-nos à luta sem restrições mentais.

Não basta estar 100% presente na sessão de coaching se a minha presença é mediada por crenças sobre o que “deve ser” o processo de coaching. A experiência transformacional no coaching acontece quando o coach é capaz de entrar na realidade do cliente, empatizar e entendê-la, e aceitar a transformação própria e do cliente como inevitável nesse processo.

O coach transcende o processo, o método, a técnica, as questões, e está 100% com a pessoa, observando e sentindo como ela observa e sente a sua própria experiência. A oportunidade de transformação acontece quando o coach aponta a atenção do cliente para o seu processo de pensar e sentir no momento em que ele acontece. Este momento de expansão da consciência do cliente é o precursor do processo de transformação. Quando a pessoa consegue ver-se a pensar e sentir, é já um outro que pensa e sente. Esse outro foi germinado. Falta “só” gestar e parir a nova pessoa.

Na verdade, não é o coach que critica, dá feedback, partilha conhecimento, questiona, treina, ou aponta para a mente do cliente para que ele se veja enquanto diferente. O coach deve abandonar o ego à entrada e ser capaz de criar uma mente partilhada com o cliente, superordenada a ambas as mentes presentes. Uma meta-mente criada em conjunto que supervisiona todo o processo e da qual emanam as interacções e intervenções. Não é o coach que questiona, é esta meta-mente que sente curiosidade em saber como é que o cliente e o coach sentem, pensam e fazem.

A meta-mente é um fenómeno que “aparece” no coaching quando coach e coachee se relacionam sem mediação de papéis sociais ou profissionais, expectativas mútuas, ou determinismos para o processo de coaching.

É porque o cliente não espera que o coach “produza” a transformação que se entrega à transformação. É porque o coach não espera que o cliente seja capaz de “fazer” coisas que as coisas são definidas como acontecimentos inevitáveis no processo de transformação. Os objectivos a atingir estão lá desde o início, mas por ambiciosos que tenham parecido, não devem limitar a transformação que somos capazes de produzir em conjunto.

Erich Fromm definiu “saber” como “ver a realidade na sua nudez.” Este é o conhecimento que importa parir: ver a realidade do que sou, livre das definições do meu ego, para poder transformar-me.

 

Este artigo faz parte do Caderno especial “Coaching” publicado na edição de Outubro (n.º 142) da Human Resources.

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