Cultura de cancelamento ou o regresso ao passado?

Por Joana Russinho, People Enthusiast, head of Human Resources e autora de “Eu e os Meus rh

Todos os anos, em dezembro, o mundo celebra o Dia Internacional dos Direitos Humanos. Em 2023, o tema desta data foi: Dignidade, Liberdade e Justiça para Todos com uma chamada à ação com o lema #StandUp4HumanRights.
Este ano, a Declaração Universal dos Direitos Humanos completa 75 anos, aniversário que marca uma das declarações universais mais inovadoras de sempre: a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). “(…) Este documento histórico consagra os direitos inalienáveis aos quais todos têm direito como ser humano – independentemente de raça, cor, religião, sexo, idioma, opinião política ou outra natureza, origem nacional ou social, propriedade, nascimento ou outro status.(…).
Não obstante, pelo que observo e leio, sinto que nunca estivemos tão condenados a seguir condutas de desejabilidade social, a troco de uma punição social chamada de “política de cancelamento”, para a qual contribui, em muito, a massificação do acesso à internet. Ora vejamos, o facto de, à velocidade de um clique, conhecermos como o outro se posiciona face a determinadas questões, convida ao julgamento de terceiros.
À beira mar conversava com um familiar que recentemente assumiu uma posição de liderança numa multinacional de grande dimensão que me confessava que o que mais o assusta na nova função é poder ser vítima deste tipo de cultura.
Pedi-lhe que me explicasse melhor o ponto: “Interajo com x Países, culturas completamente diferentes. Estudo antes de ir para as reuniões para perceber o que não devo fazer para não ofender ninguém, conhecer os amigos falsos da língua, e ainda assim sei que basta um deslize,verbal ou não verbal, para poder ser “cancelado”.
– Mas já te aconteceu algo que sustentasse esse receio?
– “Sim, no outro dia recebi um e-mail de um remetente do género masculino, que por debaixo da assinatura com o seu nome tinha indicado os pronomes “she/her”. Não reparei, respondi recorrendo a pronomes masculinos na forma singular, e de volta recebi um e-mail da outra pessoa a acusar-me de discriminação, com cópia da equipa de Recursos Humanos dos 2 Países”.
– E sofreste alguma chamada de atenção posterior? –  prossegui:
“O meu chefe chamou-me e deu-me a nota sobre a importância da sensibilidade organizacional que tenho de ter para com estas questões. Não quer que a minha promoção seja “cancelada” internamente devido a outro acontecimento do mesmo tipo”.
Isto está a ficar descontrolado, pensei, passar de “bestial a besta” por um erro de percepção desta natureza, é, diria, desconcertante. Pelos vistos já não são só personalidadesblicas que são “canceladas” pela internet. Estes perdem seguidores, patrocínios, contratos, geralmente até que outra celebridade comete uma “falha” mais grave e o respectivo “cancelamento abafa o anterior. Nas empresas, estão também as nossas pessoas à mercê de sensibilidades alheias.
Há um comentário menos feliz de um colega para outro em contexto de descontração, uma publicação que se faz numa rede social com uma frase que denota determinada conotação política/religiosa/clubística, um apoio explicito a uma causa que não é consensual, e logo podemos observar um movimento que coloca em causa questões como a nossa competência, a nossa entrega ao negócio, a nossa identificação com a empresa, e dependendo do tribunal popular, até anos de uma carreira imaculada.
Já vivi algumas situações destas, em que tive que chamar a atenção de colegas, por me terem também a mim dado a nota, de que determinado tipo de exposição pode ser prejudicial. A maioria entende esta conversa como um atentado à sua liberdade de expressão. Eu compreendo, mesmo, mas o meu dever como HR person é dar visibilidade do que pode acontecer. E há coisas mais subtis de se controlar. A cultura de cancelamento não é uma delas.
Acabei a conversa com o meu familiar dizendo-lhe para ler o código de conduta da empresa, para escutar mais do que falar nos primeiros dias, e para questionar a equipa de RH sobre todas as questões que possa ter, de forma preventiva. Aconselheio também a não ter nas redes sociais colegas de trabalho (afinal só convidamos para nossa casa quem queremos) e para, no Linkedin, evitar exposição que não seja em contexto de trabalho.
-“Há por aí uma nova PIDE?” – comentou a rir.
– Na dúvida, e face à função que ocupas, mais vale precaver – comes with the job!