Cultura organizacional: «Mesmo que não queiramos falar sobre ela, esse elefante existe e está na sala»

“Dissolução ou solução na cultura organizacional?” foi tema da primeira Talk da XXVIII Conferência Human Resources. Apesar das “provocações” de Pedro Ramos, Mafalda Lobo Xavier (MC Sonae) e Marco Serrão (Galp), não têm dúvidas quanto à resposta.

 

Colocando (literalmente) três elefantes em cima da mesa, o moderador Pedro Ramos começou por partilhar algumas curiosidades sobre este animal, como o facto de ser o maior causador de fatalidades em África – embora tenha medo de abelhas -, de poder viver em média 60 anos e de passar 16 horas a comer.

Aludindo às 12 toneladas do maior elefante encontrado até hoje, o CEO da KeepTalent questionou se, nas organizações, o igualmente grande elefante na sala será a cultura organizacional. «Faz sentido ainda falarmos de cultura organizacional? Ainda é um activo nas organizações?» Para Mafalda Lobo Xavier faz, porque, na verdade, a cultura é «o conjunto de comportamentos que temos no dia-a-dia neste contexto laboral», ou seja, a maneira como se interage e colabora, reflectindo-se muito nas medidas da empresa, seja nas pessoas que promovem como nos projectos que apoiam.

«Mesmo que não queiramos falar sobre ela, ela existe e está na sala», garante a leader Employer Brand & People lead Health and Wellness da MC Sonae, alertando: «Não podemos é não olhar para ela ou, algo mais perigoso, achar que sabemos o que é a cultura e não sabermos.»

O Chief People & Space Officer da Galp concorda e acrescenta que «a cultura é um diferenciador» e deve ser continuamente alimentada. «É um organismo vivo, e aquilo que faz a grande diferença», aliás, os resultados e a estratégia são resultantes dessa cultura. «Uma cultura vencedora é aquela que consegue ter continuamente melhores resultados, em que as pessoas estão mais alinhadas com os valores e percebem qual é o propósito da organização, onde é que a empresa quer chegar.»

Em jeito de provocação, Pedro Ramos pergunta se a cultura não será então como uma caixa em que «o que lá cabe, tudo bem, o que não cabe…», recebendo um imediato “não” de Mafalda Lobo Xavier. «Até podemos tentar fazer essa caixa, mas não conseguimos», e seria mais fácil se assim fosse, assegura. A missão passa por ter uma estratégia e dar ferramentas e orientações aos colaboradores de como a empresa gostaria que a cultura fosse, mas, na verdade, «depois é o dia-a-dia a acontecer». Outro factor-chave é a identificação clara dessa cultura, considera Marco Serrão.

Em pleno processo de mudança de propósito na Galp, o gestor partilha que à medida que os negócios e a sociedade evolvem, o mesmo acontece com a estrutura das organizações. «Seria estranho teres uma cultura A e imediatamente saltar para uma cultura B. Se estiverem à beira da falência, será importante fazer algumas mudanças, mas, no geral, trata-se de uma evolução.» Contudo, realça a importância de os colaboradores perceberem o propósito e os valores da organização, a estrela-polar que responda à pergunta “porque estamos aqui?”, e como se expressam no dia-a-dia e estão integrados nos processos de Recursos Humanos, por exemplo. Afinal, «a cultura é o somatório dos valores e comportamentos da organização».

A MC atravessa igualmente um processo de transformação, e a responsável sublinha que os valores são orientadores. «A maneira como trabalhávamos há 10 anos fazia sentido, mas neste momento importa rever algumas coisas – se não o fizermos, não vamos continuar a entregar resultados tão bons.» E embora haja aspectos positivos na cultura da empresa, existem aspectos em que a transformação é necessária, «e isso não tem de ser assustador», dá nota. Por isso, as palavras de ordem são: agilidade, colaboração, foco e apoiar as pessoas a fazerem essa transição.

 

A cultura é um puzzle?

Referindo-se à diversidade abordada na Mesa de Líderes, o moderador pergunta se faz sentido ter uma cultura única. Mafalda Lobo Xavier reconhece as mais-valias da diversidade, mas não esconde que «não deixa de ser um desafio». Considera dois pontos essenciais para ela se espelhar no dia-a-dia: «a flexibilidade e o respeito pela singularidade», ou seja, respeitar a pessoa como ela é, para que se possa sentir bem. E acredita que isso é possível numa cultura una, exactamente por esta não ser uma caixa, mas sim linhas orientadoras. «É o “eu não se sobrepõe ao todo”. Aqui, trabalhamos assim, acreditamos nisto, mas há espaço para eu pensar e trabalhar de forma diferente.»

Ainda assim, os elementos-base da cultura têm de ser comuns, contrapõe Marco Serrão. «É isso que diferencia uma organização, tem de haver consistência nos comportamentos, nos valores comuns e nos seus propósitos-base.» E deixa o conselho: «Se as pessoas não estão satisfeitas com as organizações, e acham que não representam quem elas são, devem mudar. Faz parte. Se não estamos felizes onde estamos e no que fazemos, não faz sentido continuar a fazê-lo.» Ainda que o espaço para a expressão da individualidade, para respeitar as diferenças de cada um, seja fulcral, defende que tem de existir algo comum.

Pedro Ramos aproveita a deixa para endereçar o tema da Talk: «dissolvemos a cultura, criamos uma nova, transformamos…?».

«A cultura não está escrita na pedra, tem de ter essa capacidade de transformação», destaca a responsável da MC Sonae, ainda mais num contexto tão exigente e acelerado como o de hoje. «Se não evoluirmos, a maneira como trabalhávamos e entregávamos resultados antes não vai certamente ser a mesma maneira como o faremos amanhã.»

 

O foco (e paciência) das lideranças

Para Marco Serrão, os líderes poderiam estar mais preparados para o tema da cultura organizacional, «até porque os princípios de liderança de uma organização são também o espelho do que é uma cultura da organização». Muitas vezes, os líderes estão mais focados no «imediatismo, nos resultados, no micromanagement», e esquecem-se da importância dos valores e dos princípios de . Convém não esquecer também que as pessoas são elas próprias essa cultura, contrapõe Mafalda Lobo Xavier, pelo que, logicamente, a transformação tem de ser de todos na organização. «É muito importante que o CEO e toda a administração da empresa sejam sponsors dessa mudança.»

Até para os colaboradores não verem «uma desconexão entre aquilo que se vende como a cultura da organização e os comportamentos», reforça Marco Serrão, partilhando que acontece em muitas empresas, e a Galp não é excepção. «É uma luta contínua e diária, mas também é responsabilidade das equipas de Recursos Humanos desafiar, ser uma voz crítica e liderar essa transformação», reconhece. «Se, ao primeiro desafio ou resistência, desistirmos, também não estamos a cumprir aquilo que é o nosso propósito ou o nosso trabalho.»

Na MC Sonae, antes de iniciarem o actual movimento de transformação cultural, conceberam há dois anos um novo modelo de liderança, porque havia aspectos de melhoria nos quais era necessário trabalhar, conta a People lead. «Os líderes de futuro não são os que estão 100% focados nos resultados, mas são os que também têm de trabalhar a humanização, a agilidade, a proximidade», e assegura que agora estão «muito mais preparados para chamar essas pessoas para serem elas também agentes de mudança».

 

Culturas tóxicas

Ambos reconhecem que existem e é um elefante na sala, mas podem (e devem) ser trabalhadas, muitas vezes até com pequenas decisões. «Na Galp, a mudança de espaço ajudou bastante. O escritório anterior era antiquado e compartimentado, agora é um open space e não há gabinetes», exemplifica Marco Serrão, «tal como ninguém se tratar por você, mas sim por tu».

No caso da MC Sonae, que conta com 40 mil colaboradores, existe uma cultura transversal e uma orientação de comportamentos e valores, «mas depois há coisas muito próprias que existem no seio das suas equipas, bocadinhos da cultura e muitas declinações que quase são uma cultura própria», conta Mafalda Lobo Xavier. «O importante é estarmos atentos para premiarmos aquilo que queremos ver e sancionarmos o que não queremos na organização.»

«E no futuro, a cultura será auto-sustentável?», pergunta o moderador.  «Tem de ser continuamente trabalhada, e os riscos são significativos», aponta o representante da Galp, dando como exemplo o trabalho híbrido — «que, em excesso, deteriora a cultura das organizações» — e o caso da Amazon.  «O facto de pedirem aos colaboradores para voltarem ao escritório cinco dias — não concordo com isso, acho que todos os dias não faz sentido — foi por sentirem que a cultura, que era diferenciadora, está a sofrer algum tipo de impacto.»

Outro risco apontado é o da tecnologia. «Se estamos a fazer um caminho para serem as máquinas a tomarem mais decisões e a terem mais tarefas, é algo polémico falarmos numa cultura que depende de interacções humanas, comportamentos e empatia», reconhece a representante da MC Sonae, mas confessa com entusiasmo: «Não posso prever o futuro, mas tenho muita curiosidade para perceber se este aumento da tecnologia vai diminuir o impacto da cultura ou, pelo contrário, se a vai tornar muito mais relevante.»

O importante é ser uma cultura humana, reforça Marco Serrão. «A desumanização nas organizações é um risco pela tecnologia, temos de a usar da melhor forma, mas o factor humano deve prevalecer.» Para tal, os escritórios têm de tornar-se espaços mais colaborativos, ser uma experiência superior, diferenciadora, «porque é isso que cria valor, para o profissional e também para as organizações».

Antes de terminar, Pedro Ramos deixa uma sugestão de leitura: “A viagem do elefante” de José Saramago, em que, «a dado momento, o autor diz algo que se enquadra muito no papel de Recursos Humanos: “ter de pagar pelos próprios sonhos deve ser o pior dos desesperos”». E uma reflexão final: «Ser Recursos Humanos é ser sonhador, mas às vezes também se desespera, certo?»

Por Tânia Reis | Foto: NC Produções

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