Estórias com Propósito. Quando a dor se transforma em esperança

Eram os anos 90 e, nos meus 20 anos, entrei na APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima), quando ainda era um projecto jovem, mas carregado de esperança. Havia um pequeno espaço, algumas linhas telefónicas e, acima de tudo, uma convicção: ninguém deve enfrentar a violência sozinho.

 

Por Elsa Carvalho, director – Business Development na WTW

 

Recordo a primeira vez que entrei no gabinete. A APAV era então uma semente: poucos recursos, poucos voluntários e pouca visibilidade. Na sociedade, falava-se pouco de violência doméstica; era um tema guardado entre paredes, envolto num silêncio pesado que se confundia com normalidade, mas sabíamos que era urgente abrir espaço para vozes que ninguém queria ouvir. Nos primeiros dias, vivi um misto de curiosidade e receio: estaria preparada para acolher testemunhos de violência escondida dentro de portas? E que respostas teria para as situações com que me iria confrontar?

A cada chamada e a cada voz, um novo mundo se abria. Vozes baixas, muitas vezes trémulas, carregadas de medo. Mulheres, sobretudo, mas também homens, crianças, idosos. Histórias de dor repetidas: isolamento, vergonha, descrença em si e nos outros. O que mais me marcou foi perceber que, para muitos, falar era já um gesto de libertação, e a simples certeza de que alguém escutava, sem julgar, era em si um acto de coragem, numa sociedade que, na época, parecia não estar preparada para estas vozes.

Recordo a força de um “estou aqui” e de um “não está sozinho”. Na APAV, aprendi que, por vezes, o sofrimento maior nem é a agressão sofrida – é a solidão e a vergonha, e que uma rede de suporte faz toda a diferença. Ser voluntária foi também descobrir que o humano se constrói no plural – dificilmente alguém se reergue sozinho.

Éramos uma equipa pequena, mas coesa. Entre voluntários, havia espaço para o debriefing, para lágrimas e silêncios partilhados. Cuidar dos outros exigia também que cuidássemos uns dos outros, e a APAV crescia assim, também de dentro para fora, num trabalho feito de mãos entrelaçadas, de escuta e de confiança.

Na altura, a APAV apostava em criar e manter uma rede mínima de Gabinetes de Apoio à Vítima (GAV), apoiada por voluntários, e em cooperar com instituições públicas e privadas.

Com o tempo, deixou de ser apenas uma associação corajosa para se tornar uma voz nacional no combate à violência. Hoje, é uma rede estruturada, presente em todo o País, com gabinetes locais, casas de abrigo e respostas especializadas. Cresceu em dimensão, mas sobretudo em profundidade: tornou-se sinónimo de confiança, acolhimento, esperança, e ajudou milhares de pessoas a reerguer-se.

Também a opinião pública mudou. A violência, antes escondida, ganhou voz. Histórias antes caladas passaram a ecoar na praça pública. O que era dor privada tornou-se consciência colectiva, e esse reconhecimento abriu caminho para uma nova forma de pensar e viver a dignidade humana.

Quando recordo aqueles tempos, ainda ecoam vozes dentro de mim. Histórias de violência física, psicológica e sexual, mas acima de tudo histórias de silêncio, vergonha e isolamento. A violência tinha muitas formas, mas quase sempre o mesmo denominador: a perda da dignidade e a sensação de não ter saída. Dignidade essa que não é um dado adquirido, mas um direito que, quando violado, precisa de ser restituído.

Na APAV, tínhamos claro que, para além de cada caso individual, todos tínhamos a responsabilidade de quebrar o ciclo da violência: pela denúncia, pelo apoio, pela educação ou, simplesmente, pela empatia e pela escuta. Porque uma dor partilhada deixa de ser invencível. Gestos, palavras e acções podem mudar o curso de uma vida – e uma rede de suporte pode salvar uma existência inteira.

A APAV ensinou-me que ser humano também é isto: reconhecer a dor do outro e transformá-la em esperança partilhada, porque ninguém precisa de estar sozinho na dor.

Essa é uma herança que guardo comigo: a certeza de que cada voz merece ser ouvida, e de que a humanidade cresce sempre que nos dispomos a escutar, apoiar e sustentar.

 

Este artigo foi publicado na edição de Setembro (nº. 177) da Human Resources, nas bancas.

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