
Mais do que não poder ser contactado: as fragilidades do direito à desconexão
Por Nuno Abranches Pinto, advogado e partner da Littler Portugal
Em Dezembro de 2021, a Lei n.º 82/2021, de 6 de Dezembro, introduziu uma nova obrigação dos empregadores na relação com os trabalhadores da empresa. Falamos, até a propósito das férias que são próprias desta época, no dever que impende sobre o empregador de se abster de contactar o trabalhador em períodos de descanso. A implementação desta obrigação foi feita por alteração do Código do Trabalho, ao qual foram aditados os art. 199.º – A e 169.º-B.
Note-se que o legislador se refere a uma obrigação do empregador – o empregador não deve contactar o trabalhador no período de descanso. Evidentemente corresponde-lhe um direito na esfera jurídica do trabalhador – o direito de não ser contactado. Contudo, este direito do trabalhador (direito a não ser contactado) assume um tratamento de natureza também positiva – o trabalhador tem o direito de se desconectar ou de desligar durante os períodos de descanso. Ou seja, o trabalhador pode, não apenas não responder a um contacto cuja existência foi por si notada, como ainda bloquear a possibilidade de se aperceber da existência do contacto. O trabalhador pode desconectar-se ou desligar bloqueando a possibilidade ou a tentativa de contacto, sem que por isso possa ser penalizado, sob pena de se considerar que existe ação discriminatória (art. 199.º-A, n.º 2 do CT).
A solução implementada pelo legislador presta-se a dúvidas.
Por exemplo, a obrigação de abstenção de contactos impende apenas sobre o empregador? A avaliar pelo teor da lei, a resposta é positiva. Isto significa que não existem consequências para a existência de contactos provindos de colegas (assumindo a inexistência de relação hierárquica) ou até de clientes. Pense-se na hipótese de um cliente que dirige ao trabalhador uma mensagem de correio electrónico com um pedido de intervenção urgente, colocando o empregador em conhecimento. Aparentemente, o empregador não pode ser penalizado por causa desse contacto, ainda que o mesmo tenha um potencial de perturbação igual ou até superior a um contacto provindo do empregador. Note-se que o legislador poderia ter ido mais longe, tendo optado por não o fazer (por exemplo, poderia ter imposto a implementação de medidas de restrição do recebimento de contactos, as quais se afiguram viáveis do ponto de vista da tecnologia disponível).
Por outro lado, o carácter binário da figura (dever de abstenção e direito de desconexão) acaba por conferir prevalência à vertente do direito em detrimento da vertente da obrigação. Se o trabalhador concretizar a desconexão, o contacto tenderá a tornar-se irrelevante dado que, na verdade, o trabalhador não o notará.
Poderia então o empregador enviar uma mensagem de correio electrónico sobre assunto não urgente, sem que esse assunto pressuponha a necessidade de resposta imediata? É relevante a indicação inserida na mensagem de que a mesma só deve ser tratada depois de findo o período de descanso? Ou seja, o contacto a que se refere a lei diz respeito a toda e qualquer iniciativa do empregador, independentemente de exigir ou não reacção do trabalhador durante o período de descanso? Se não exigir qualquer tipo de reacção, poderá não haver um impacto efetivo do ponto de vista do direito ao descanso, abrindo a porta à ponderação quanto a saber se a lei não foi além do seu próprio objectivo. Outra questão ainda: um contacto que não seja especificamente dirigido a um trabalhador concreto, mas genericamente dirigido a todos os membros que integram a organização, poderá ser tido como contacto ao trabalhador? Pense-se na hipótese de um grupo em redes sociais a que pertencem o empregador e todos os trabalhadores da empresa. Se o contacto não for nominativo, não exigindo qualquer tipo de reacção ou resposta a um trabalhador que integra o grupo, haverá perturbação do descanso?
A exigência de reacção (explícita ou, atendendo ao tema do contacto, implícita) e o seu carácter nominativo não poderão deixar de ser ponderados na aferição da existência ou não de violação do dever de abstenção de contactos (ou seja, para aferir a existência ou não de violação do direito ao descanso), sempre considerando que o trabalhador tem do seu lado a prerrogativa de não notar o contacto em causa, caso efectivamente concretize a desconexão, como é seu direito.
Neste contexto, é inequívoco que ganha relevância a implementação de políticas de desconexão, as quais poderão incluir medidas de natureza técnica (por exemplo, respostas automáticas a mensagens enviadas durante o período de descanso, configuração de envio programado de mensagens de correio electrónico, criação de alertas sobre o envio de mensagens em período de descanso ou mesmo configuração de servidores para bloquear o envio de e–mails durante determinado período), mas também medidas de natureza jurídica (regulação do direito à desconexão em contratos ou regulamentos internos, definição de excepções que devam ser consideradas como situações de força maior) ou de gestão (sensibilização e formação para os riscos do burnout e da hiperconectividade, incentivo ao planeamento antecipado de tarefas, criação de canais de denúncia e definição / medição de indicadores de referência).