Novo regime do teletrabalho e do direito a desligar. Especialistas são unânimes: «Nova lei não serve para (quase) nada»

O novo regime de teletrabalho entrou em vigor no início deste ano, tal como a legislação sobre o direito a desligar. Mas, com muitas dúvidas a persistir sobre a sua aplicabilidade, a Human Resources desafiou a Abreu Advogados a ajudar a esclarecê-las. Os seus especialistas assim fizeram, num webinar de duas horas, respondendo a dezenas de perguntas, mas o que desde logo se destaca é que «a lei está mal feita».

Por Sandra M. Pinto | Fotos Sérgio Miguel, NC Produções

 

O webinar “O novo regime do teletrabalho e o direito a desligar: Uma conversa inadiável” decorreu na passada quinta-feira, dia 24 de Março – com público presencial no auditório da Abreu Advogados e com transmissão em directo via zoom –, contando com a participação de cinco especialistas: Carmo Sousa Machado, sócia da Abreu Advogados, co-coordenadora da equipa de Direito do Trabalho e vice-presidente da Ordem dos Advogados; Cláudia Madaleno, professora auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e membro do CIDP – Centro de Investigação de Direito Privado da FDUL; Luís Gonçalves da Silva, consultor da Abreu Advogados e professor também na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; Madalena Caldeira, sócia contratada da Abreu Advogados; e Patrícia Perestrelo, sócia contratada da Abreu Advogados e co-coordenadora da equipa de Direito do Trabalho.

A sessão decorreu dividida em dois momentos – um sobre o novo regime do teletrabalho, outro sobre o direito a desligar –, com a moderação de Ana Leonor Martins, directora de redacção da Human Resources, que teve em consideração as perguntas e dúvidas que chegaram das mais de duzentas pessoas que se inscreveram.

 

A abertura do webinar esteve a cargo de Carmo Sousa Machado que destacou a actualidade dos temas, mas também as muitas dúvidas e questões que tem despertado em «todos os gestores, directores de Recursos Humanos e advogados».
Na opinião da co-coordenadora da equipa de Direito do Trabalho da Abreu Advogados, «esta lei traz muita discussão, muitas dúvidas, e esperamos nesta sessão de trabalho poder responder a todas as questões que nos foram sendo colocadas. Se tal não for possível estamos sempre à disposição de todos para ajudar e esclarecer naquilo que seja preciso».

De seguida,  partilhou os resultados de duas questões que a Abreu Advogados lançou nas redes sociais: «Verificou-se que 66% dos respondentes referiram que o modelo de trabalho praticado pela sua organização é actualmente o híbrido, isto por contraposição ao modelo presencial ou 100% remoto. Por outro lado, 55% das pessoas consideram que a formação dos profissionais é a melhor forma de assegurar o respeito pelo direito a desligar, em contraste por exemplo com a fiscalização»

Seguiu-se uma breve intervenção de Luís Gonçalves da Silva, para introdução do tema sobre o novo regime do teletrabalho. Começou por defender que «esta é uma lei tecnicamente muito mal feita. Aliás, mesmo depois de lida, não se consegue perceber o que é o que legislador pretendia». E explicou que a noção de teletrabalho assenta numa ótica de subordinação jurídica, em local não determinado por este (o empregador) e com recurso a tecnologias de informação e comunicação. «A primeira coisa a perceber é que se o local for determinado pelo empregador, deixamos de ter teletrabalho.». Mas, e apesar disto, o empregador pode ter uma palavra a dizer, sobretudo por razões técnicas e de segurança: «É preciso que o local onde o trabalhador está tenha uma boa rede de internet, por exemplo.»

Outra questão reside no facto de a lei definir que o empregador tem de pagar as despesas do teletrabalhador quando este é chamado a comparecer nos escritórios e quando exceder a deslocação do seu domicílio à empresa, o que significa que «se o trabalhador pudesse escolher arbitrariamente o local onde presta a sua actividade, podia estar a trabalhar em Timor e, sendo chamado à empresa, esta teria de pagar a sua deslocação, ou seja, a viagem até ele chegar ao seu domicílio. Ora, não me parece razoável imputar à empresa um custo dessa dimensão.» Na opinião do especialista, o empregador deve ter uma palavra na escolha do local de trabalho, «sob pena de termos uma situação de abuso de direito».

Os nómadas digitais também não estão referidos na lei, «pelo que devemos atentar mais à teleologia do que aos requisitos formais do artigo 165», defendeu, acreditando que, apesar de não estarem expressamente previstos, se incluem no regime de teletrabalho. Surgem ainda os regimes flexíveis em que, por exemplo, o trabalhador pode escolher ficar em casa um, dois ou três dias por semana, por exemplo. «Antes, estava na lei a expressão “habitualmente fora”, o que ajudava, mas ela foi retirada, o que significa que basta que o trabalhador, num pequeno período da sua actividade, a realize em sua casa, recorrendo a meios de tecnologia de informação, para que se subsuma no regime de teletrabalho. Esta, tal como outras, é uma norma que carece de ser adaptada.»

O teletrabalho existe desde 2003, mas os problemas que agora possam surgir «resolvem-se com a aplicação da lei no tempo», constatou Luís Gonçalves da Silva. «Quer de acordo com o artigo 7.º que aprova o código, quer de acordo com o artigo 12.º do Código Civil, o novo regime aplicar-se-á não aos factos já ocorridos, não aos efeitos dos factos já verificados, mas a situações posteriores.»

Passando a algumas dúvidas enviadas pelos inscritos no webinar, surge a questão sobre se se podem fazer acordos de teletrabalho com vínculos mensais ou quinzenais. O professor responde afirmativamente. «Aliás, podem ser acumulados regimes especiais, o do teletrabalho, com regime de contrato de trabalho a termo, que pode ser a tempo parcial.»

Por outro lado, e com muitas empresas a optar, pelo menos nesta fase, por um modelo híbrido de trabalho, é preciso fazer alterações ao contrato caso o trabalhador esteja dois dias em casa e três no escritório? É diferente se for três em casa e dois no escritório? «São exactamente a mesma coisa», afirma Luís Gonçalves da Silva, que chama a atenção para a importância de a implementação do teletrabalho vir a ser acompanhada pela transformação digital. «Devia haver uma ajuda aos trabalhadores para que o trabalho possa efectivamente ser realizado à distância, sem afectação da eficiência, da produtividade e dos custos.»

Confusão que é feita regularmente é entre teletrabalho e flexibilidade de horário. E o especialista é peremptório: «O legislador indica que o acordo tem de fixar o horário de trabalho, pode é haver isenção de horário de trabalho, mas que tem sempre limites», esclarece. «Não havendo essa isenção, o trabalhador tem direito às pausas que teria se estivesse presencialmente, e só. Não passa a poder ausentar-se a meio da tarde só por estar em teletrabalho. O que muda é apenas o domicílio e a forma de comunicação, não há dispensa de actividade.»

 

Privacidade e custos: quem suporta o quê?

O teletrabalho, ainda que já previsto na lei antes da pandemia, não tinha expressão em Portugal. Com a sua adopção – forçada – de forma massiva, e tendo-se tornado prática comum em várias empresas, são vários os desafios. Carmo Sousa Machado destaca por exemplo os processos de onboarding. «É muito importante que as organizações consigam passar a sua cultura, transmitir os conhecimentos aos mais novos, manter o espírito de equipa, além de que, muitas vezes, a convivência entre colegas é geradora de ideias, de iniciativas e de trabalho.» Sublinha igualmente o reforço da «relevância da confiança, da lealdade, da boa-fé. Se têm de existir, por natureza, em qualquer relação profissional, numa situação em que essa relação é feita à distância, esses valores assumem um papel ainda mais importante».

Outra tema que ganha novos contornos em regime de teletrabalho é o da privacidade do trabalhador versus o direito de controlo do empregador.  Carmo Sousa Machado explica que o facto de se estar em teletrabalho não significa que o empregador perca o seu direito de controlar a prestação da actividade. «Mas a realidade é que quando falamos nos mecanismos à disposição para tal, verificamos que não existem muitos, porque a lei que entrou em Janeiro dá e tira – se afirma que há esse direito ao controlo, noutro artigo refere que há proibição de outras acções, como a gravação de som e de imagem e o acesso ao histórico de consultas feitas pelo trabalhador, ou o controlo por meio de videovigilância à distância.» Para a especialista, este controlo na prática vai ter de ser feito «confiando».

O facto de os equipamentos serem fornecidos pela entidade empregadora não muda essa realidade, ou seja, não lhe dá acesso. E são equipamentos que «podem igualmente ser usados para fins pessoais, algo que já era permitido antes». O que agora está expressamente previsto é que tem de ficar definida essa utilização para fins pessoais.

Este tema leva a outro, que é dos que mais dúvidas levanta no que respeita ao teletrabalho: o dos custos. A lei determina que o empregador é responsável não só pela disponibilização ao trabalhador dos equipamentos, mas também dos sistemas necessários à realização do trabalho. Madalena Caldeira afirma que «a lei está particularmente mal feita neste aspecto». Explica: «A lei parte do princípio de que todas as despesas que resultam directamente do teletrabalho são para ser suportadas pelo empregador. Se falarmos nos equipamentos, não é difícil fazer prova dessa aquisição por parte do trabalhador, mas a dificuldade surge relativamente a outras despesas, uma vez que o legislador fala em todas as despesas, ou seja, as despesas adicionais que resultam directamente do teletrabalho.» Mas não é todo e qualquer instrumento de que o trabalhador necessite para trabalhar: «À partida, uma secretária ou um candeeiro, por exemplo, estão excluídos. A cadeira já pode ser mais dúbio, mas esse tema também existe presencialmente.»

Havendo alguma delimitação quanto ao tipo de despesa, a dúvida efectiva surge relativamente ao quanto. «Aqui falamos do acréscimo de custos, pois a lei refere despesas adicionais, tanto com a aquisição de bens como as determinadas por comparação com as despesas do mesmo mês do ano anterior. O princípio está lá, a necessidade é real, mas a lei subverteu a lógica do custo/benefício: o benefício social disto tem de ser igual ou superior ao custo, mas isso não vai acontecer, por dois motivos: porque vai ser impossível demonstrar quais foram as despesas adicionais que o trabalhador teve, e o ónus é do trabalhador, mas também porque o legislador não teve em conta que a lei entrou em vigor a 1 de Janeiro de 2022 e que as despesas são por comparação com o ano anterior, em que a maior parte das pessoas que hoje estão em teletrabalho já estavam nessa altura», faz notar a especialista.

Assim, será difícil provar a despesa adicional. «Apesar de, na maior parte dos casos, ser uma diferença residual, há outros em que há efectivamente uma diferença real, e é aqui que o problema de fazer a prova perante o empregador se coloca.» Mesmo tendo, por exemplo, a factura da electricidade, como se prova que desse acréscimo foi resultado do teletrabalho? «É de facto muito difícil. E isso tem levado muitas empresas a estipular, em acordo com os trabalhadores, um determinado valor, o que é perfeitamente possível», afirma a especialista, ressalvando no entanto que isso pode trazer «problemas mais tarde». Surge desde logo a questão de saber se esse adicional é rendimento tributado em sede de IRS ou não, sendo que «a alternativa será estabelecer um valor sobre uma factura apresentada pelo trabalhador, e aí não será considerado rendimento para a autoridade tributária». Agora, «este montante vai ter de ir sempre incluído no recibo de vencimento, pois de outra forma o empregador não vai conseguir deduzi-lo como custo».

Por outro lado, quem está em teletrabalho tem direito a receber subsídio de refeição? Luís Gonçalves da Silva não tem dúvidas da resposta: não. «O subsídio de refeição não é retribuição, não o sendo está indexado a uma despesa que surge pelo trabalhador estar fora do seu habitat natural. Assim, a partir do momento em o trabalhador está no seu habitat natural – a sua casa –, continua a fazer a refeição, claro, mas tem de a pagar. A questão foi discutida ainda antes da alteração ao regime de teletrabalho, mas não creio que exista base jurídica para ser pago subsídio de refeição a quem está em teletrabalho. Esse pagamento pode é estar previsto no contrato, tal como também pode ser pago um montando superior ao pré-definido por lei», ressalva.

 

A saúde e os acidentes de trabalho

Se ninguém questiona que o teletrabalho traz vantagens, também será difícil ignorar as desvantagens. Neste âmbito, destaca-se o isolamento, que pode contribuir para o agravamento da saúde mental dos profissionais. Mas haverá outros riscos associados ao trabalho prestado remotamente. Cláudia Madaleno começa por assinalar que o trabalhador em teletrabalho mantém os mesmos direitos dos outros trabalhadores em termos de segurança e saúde no trabalho. «Existem riscos que se calhar são menos visíveis no teletrabalho, como por exemplo a situação de assédio, mas poderá haver outros riscos acrescidos.» Contextualiza: «Fala-se em três tipos de riscos: relacionados com o próprio espaço de trabalho, relacionados com o local e relacionados com riscos psicossociais, que estão ligados a factores como o isolamento ou a falta de contacto com os colegas. Assim, tal como o empregador toma cautelas com o local de trabalho na empresa, deve fazer o mesmo relativamente ao local em que os trabalhadores estão em teletrabalho», defende, reconhecendo no entanto que a execução desse dever pode entrar em confronto com o direito do trabalhador à privacidade. «Estatisticamente, dizem as seguradoras, há menos acidentes em teletrabalho. Mas o facto de estar a trabalhar em casa não anula esse risco, pelo que, em teletrabalho, esse dever do empregador passa muito pela formação e pela informação que dá aos seus trabalhadores para que eles saibam exactamente tudo o que devem fazer para trabalhar em casa em segurança», aconselha.

Os pressupostos de acidente de trabalho em casa não são uma novidade, uma vez que já existe teletrabalho desde 2003. «O conceito de acidente de trabalho não se altera consoante o trabalhador esteja na empresa ou em casa, porque existem as extensões de acidentes de trabalho», esclarece. «Só muda o local, sendo que os problemas que vão surgir serão semelhantes aos que surgem quando os trabalhadores vão em missão ou em viagem durante a qual podem ter um acidente.» Surge no entanto dificuldade na diferenciação entre actos na vida privada e actos na vida profissional. «Só é acidente de trabalho se a pessoa estiver no local e no tempo de trabalho, existindo uma relação com o exercício da sua actividade.» A extensão dos acidentes de trabalho (artigo 9.º dos acidentes de trabalho) aplica-se igualmente, quer seja trabalhador presencial ou em teletrabalho. «A questão vai ser colocada relativamente à prova de que a pessoa no momento em que teve o acidente estava a trabalhar, o que é mais difícil se houver isenção de horário.»

 

Direito a desligar

Com o regime do teletrabalho, o tema do direito a desligar ganha nova importância. Patrícia Perestrelo lembra precisamente que não é um tema novo. «Num mundo globalizado, houve um grande esbatimento entre a fronteira que separa a vida pessoal da profissional, o que se agravou com a pandemia, levando, em situações limite, a condições de burnout.» Agora, a lei prevê um dever de o empregador se abster de contactar, ou seja, «existe o ónus do empregador de cumprir o dever de não contactar o trabalhador, mais do que o trabalhador poder reclamar um direito para si». Aqui fala-se de “empregador”, incluindo representantes legais da empresa e superiores hierárquicos do trabalhador. «Não estamos a falar de contactos entre colegas, mas parece-nos que devia haver por parte dos empregadores a implementação de uma política interna que não permitisse aos colaboradores terem contacto entre si, de âmbito profissional, fora do horário de trabalho.»

Relativamente ao contacto em si, a lei não dá nenhuma definição, «pelo que pode ser considerado contacto todo aquele que é feito pelo empregador ou apenas aquele em que pede uma resposta», seja por telefone, e-mail ou mensagem. Se o contacto for feito no período de descanso do trabalhador, mas não exigida resposta imediata, o empregador não está a violar o dever. Esta abstenção de contacto aplica-se tanto aos trabalhadores em teletrabalho como àqueles em regime presencial, já que «a proibição abrange estas duas situações». E aplica-se aos períodos de descanso, o que significa todos os períodos fora dos períodos de trabalho. «Nos trabalhadores que estão em regime de prevenção, parece-nos que não há qualquer incumprimento quando o empregador contacta esse trabalhador; já nos trabalhadores que têm isenção de horário de trabalho, aplica-se a regra de abstenção de contactos no período de descanso.»

A lei prevê excepções a este dever de não contactar os trabalhadores fora do horário de trabalho, os chamados casos de força maior, que são a excepção, e aqui «a doutrina diverge», diz Patrícia Perestrelo. «Na lei, este é um conceito indeterminado, pelo que podemos ter uma definição mais restritiva e aqui está subjacente uma ideia de inevitabilidade. «Os exemplos são as tempestades e os grandes desastres, por exemplo, e em casos equiparáveis a estes é que o empregador poderia contactar o trabalhador.» Depois há uma interpretação mais ampla, «temos de aproximar este conceito de força maior à motivação do trabalho suplementar».

O encerramento da sessão foi assegurado por Carmo Sousa Machado, que destacou algumas das principais ideias, desde logo a distinção entre teletrabalho e trabalho no domicílio, «pois importa não confundir conceitos»; a necessidade de clarificar diversos temas, como o das despesas, «quem vai custear, em que medida e de que forma vai ser feito»; e, relativamente aos acidentes de trabalho «acautelar junto das seguradoras as situações de teletrabalho e ter a certeza de que estas estão avisadas de que as pessoas estão nesse regime».

Relativamente ao direito a desligar, a responsável refere que «é preciso sobretudo haver bom senso por parte de todos os envolvidos». E sensibiliza para a importância da formação, até porque 55% dos inquiridos online respondeu que a formação é o caminho ideal para se conseguir atingir os objectivos deste direito», salienta.

«A palavra a ter em linha de conta é, acima de tudo, a prevenção, a qual, juntamente com o bom senso, são as duas palavras mais importantes retiradas desta discussão e análise», conclui.

 

Pode (re)ver a sessão na ínregra aqui.

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