O digital vai potenciar e não fragilizar as competências humanas, concordam especialistas da WTW, Galp e Super Bock Group

Elsa Carvalho, head of Business Development da WTW, Mafalda Vasquez, head of Attract, Select, Onboard & Diversity and Belonging da Galp, e Pedro Ribeiro, Group HR director do Super Bock Group, reflectiram sobre o papel da Inteligência Artificial perante as competências humanas, na XXVI Conferência Human Resources.

Por Margarida Lopes | Foto NC Produções

 

O debate foi moderado por Ana Leonor Martins, directora editorial da Human Resources.

Pode a IA colocar em risco a relevância dos gestores de pessoas? Ou muda o seu papel… por exemplo para gestão de emoções e do propósito e não de processos?
Elsa Carvalho (EC): Já vimos que a componente da tecnologia é uma aliada e não uma ameaça, até porque vem ajudar na componente da dupla vertente. Na automação, e na componente analítica, de que forma  conhecemos melhor as nossas pessoas, aquilo que são os seus interesses, preferências e de que forma conseguimos customizar e personalizar tudo o que tem que ver com a Gestão de Pessoas.

Mas não vem substituir a figura do gestor de pessoas na componente do toque humano, que é específico, é único, e é um papel do gestor de pessoas que foi reforçado. O gestor de pessoas que se baseia na componente processual, sim, pode perder relevância, o gestor de pessoas que se baseia na componente relacional e na componente daquilo que, de alguma forma, acaba por ser interacção acho que vem claramente reforçado.

 

Mafalda, e os profissionais em geral, correm o risco de perder a relevância nas organizações? Estão conscientes da importância, ao longo da vida, da necessidade de upskilling/ reskilling?
Mafalda Vasquez (MV): Numa perspectiva pessoal, diria que o grande desafio que hoje temos nas empresas é que se, antigamente, os gestores de negócio sabiam exactamente quais as skills que os negócios precisavam, hoje em dia, o negócio não consegue dizer o que precisa e isso provoca uma fragilidade muito grande em termos de espaço temporal, naquilo que é o quão capacitado está o contexto académico para dar às empresas aquilo de que efectivamente precisam.

Vejo aqui o duplo papel da necessidade das empresas efectivamente automatizarem aquilo que é o seu workforce. A Galp está a fazer exactamente isso numa lógica de piloto com Generative AI (GenAI), está a tentar perceber o que é o seu ADN, quais as skills que tem dentro de casa e, a partir daí, perceber onde vai fazer o build, o borrow e o buy das competências. A lógica é sempre autonomizar o buy, porque tem a workforce que quer recapitalizar e transformá-la para o futuro.

Na lógica do profissional, diria que aí, sim, é um caminho de sensibilização a fazer para aquilo que é o life long learning. Esta lógica da adaptabilidade, que há uns anos só era exigida numa tecnológica, hoje, pela rapidez e volatilidade do próprio negócio, é uma competência que todos temos de ter. Na Galp, sem excepção, é exigida a qualquer trabalhador.

 

Pedro, e as empresas, estão a dar a formação realmente de acordo com as suas necessidades? Para isso será preciso haver um conhecimento sobre as competências e funções de todas as pessoas na empresa, e se estão adequadas às necessidades do negócio – e que numa grande empresa, pode ser um desafio…
Pedro Ribeiro (PR): As empresas conhecem relativamente bem, quer as funções quer as competências, e ao longo dos anos foram desenvolvendo processos. Mesmo nas empresas grandes isso é relativamente bem conhecido. Agora as funções são divididas em tarefas e actividades e essas, sim, vão ser mais automatizadas com ou sem recursos à inteligência artificial e necessariamente vão mudar a natureza dessas funções.

Devemos interrogar-nos se a nossa formação hoje em dia já está a ter em consideração aquilo que sabemos que vai acontecer no futuro. Acho que ainda estamos muito focados em dar resposta às necessidades do presente e há poucas empresas que já estão a ter isso em consideração. Se sabemos que as funções vão mudar, devemos antecipar e não estar à espera que mudem. As empresas que estiverem a trilhar esse caminho hoje estarão mais preparadas para uma transição suave, mais eficiente e com menos custos.

 

Elsa, quais as competências com e de futuro? Soft skills e human skills, que diferenças? Se falamos de competências humanos, são inatas ou podem ser desenvolvidas?
EC: Vi há pouco tempo um estudo, que achei curioso, que dizia que se recruta pelas hard skills e se despede pelas soft skills. Ou seja, nos processos de recrutamento estamos muito preocupados com as hard skills, com o saber fazer e os conhecimentos técnicos que as pessoas têm. E o que é certo é que, nos processos de despedimento, acabamos por despedir pelas soft skills.

Também vi uma terminologia que pretendia fazer a distinção entre o que são soft skills e human ou people skills. As soft skills estão muitas vezes associadas àquelas competências que não deixam de ser comportamentais mas individuais, muito ligadas ao indivíduo, como a capacidade de resolução de problemas, a flexibilidade, o planeamento e organização. As human skills estão relacionados com a interacção. Quando falamos em human skills, falamos em competências que só se podem manifestar no relacionamento com os outros, a gestão de conflitos, a interacção, empatia e a componente da liderança.

Agora se as competências são inatas ou podem ser desenvolvidas sem dúvida, aliás, isto é uma discussão antiga, que há pessoas que têm mais predisposição do que outras para determinados tipos de estilos comportamentais, mas claro que podem ser desenvolvidas.

Uma componente a que estamos sempre atentos são as competências do World Economic Forum. Neste momento, as competências que estão no top 5 são pensamento analítico; pensamento criativo; resiliência, flexibilidade e agilidade; automatização; e autoconhecimento e curiosidade. Curiosamente não vejo muitas human skills.

Sobre as perspectivas da distribuição de emprego, quando olhamos para os insights do World Economic Forum 2023 em comparação com o de 2020, parece que são dois organismos substancialmente distintos. Em 2023, a perspectiva de destruição de emprego líquido (entre aqueles que são criados e aqueles que são eliminados) é de 2%, se olharmos para o de 2020, a perspectiva de destruição de emprego era brutal. Entre muitos empregos que surgem ligados à componente da tecnologia e da digitalização e os empregos que se vão destruir por si só, o saldo neste momento é de 2%.

 

Pedro, quais as competências que há maior dificuldade em encontrar/recrutar? E o que fazem para dar resposta a essa dificuldade? Pode a IA ser (parte) da resposta à escassez de talento, que tem vindo a afectar todos os sectores, transversalmente?
PR: O problema da escassez de talento está relacionado, sobretudo, com a demografia e não com a falta de recursos técnicos específicos. O país está a perder muitos talentos jovens a sair do país, a população está a envelhecer e o somatório disto causa um problema demográfico.

Partilho da opinião que a inteligência artificial será parte da resposta à escassez de talento. E a automação também continuará a ser. Isto porque o ser humano tem as aptidões físicas e as aptidões cognitivas. Na parte física ao longo dos tempos, a automação já tem vindo a substituir as tarefas repetitivas, mas, agora, a novidade, ou nem tanto, é que mesmo na parte cognitiva, naquilo que é a aprendizagem, a comunicação, compreensão das emoções, a inteligência artificial começa a substituir o humano em alguns ambientes mais controlados. E isso é uma tendência que não podemos desvalorizar, porque vai suprir algumas lacunas que temos com a escassez de talento.

Quando me perguntas que competências tentamos privilegiar, no Super Bock, a adaptabilidade, a flexibilidade e a vontade de fazer coisas diferentes é algo que se valoriza desde o início. Posso dar um exemplo, o Superbock Group é uma empresa que gostamos de dizer que “é de pessoas e marcas mas tem uma base industrial”, que trabalhar sete dias por semana, 24 horas por dia, 365 dias por ano e, por isso, o pior que pode acontecer é ter um dos activos parados. E um técnico de manutenção preventivo especializado é muito difícil de encontrar no mercado, o que o Super Bock está a fazer é capturar os dados que os equipamentos disponibilizam e estamos a tentar que o sistema, ou seja a inteligência artificial, nos dê uma previsão de quando as máquinas vão avariar.

É um processo que está no início, a fiabilidade é interessante, mas ainda é não é espectacular, mas isso faz com que, ao nível das pessoas, isso possa suprir uma lacuna com os técnicos de manutenção preventivos disponíveis e, ao mesmo tempo, faça com que os actuais técnicos possam ser requalificados para funções de maior valor acrescentado, porque há a componente curativa e a componente do planeamento, de prevenção e depois podemos parar as linhas e a produtividade melhora substancialmente.

Por um lado estamos a combater a escassez de técnicos qualificados e, ao mesmo tempo, estamos a requalificar os actuais para actividades de maior valor acrescentado com impacto directo na produtividade. Acredito que as human skills serão mais importantes no futuro.

 

Mafalda, e nos processos RH? Se há área onde a IA será certamente uma mais-valia é nos processos. No recrutamento por exemplo, será onde se fala mais. Mas também poderá ajudar no desenvolvimento. A Galp já está a fazer esse caminho? 
MV: Sem dúvida, estamos a fazer um caminho de incorporar o GenAI em quase todos os processos de RH numa primeira fase numa lógica de orquestração e processo, perceber exactamente quais são as tarefas de baixo valor porque podem ser automatizadas, libertando as pessoas para tarefas de maior valor. Tendo o papel de ouvir e agir sobre aquilo que é escuta activa da organização.

Em recrutamento está ser utilizado, este ano, a campanha de estágios da Galp foi gerada 100% pela inteligência artificial. A Galp está a testar numa lógica de testar aquilo que é receptividade, impacto. Está a ser testado também o chatbot naquilo que é a capitalização da conversão de talento que visita a página da Galp, reencaminhando para a melhor oportunidade. Estamos a tentar incorporar, dentro do possível, a GenAI nos processos.

 

E melhorar os processos pode também ser uma resposta à baixa produtividade?
MV: Sem dúvida, trago aqui um tema que não é tanto do fórum de hoje, mas que para mim é pertinente. Quando fazemos um inquérito de clima, temos dois tipos de resultados, engagement e enablement e valorizamos muito mais o engagement do que o enablement, que fala precisamente daquilo que preciso de ter para desempenhar a minha função, como é que consigo ser produtivo. Acho que, se melhorarmos o enablement, vamos melhorar a nossa produtividade.

 

Conseguem identificar onde é que a inteligência artificial vai ser seguramente uma vantagem e um perigo ao qual temos de estar atentos?
EC: A pessoa e a inteligência artificial já não são complementares, já existe uma simbiose entre o físico e o digital. A partir do momento em que nos permite a automação e libertar tempo para tarefas de maior valor, é claramente uma vantagem.

Em termos de desvantagem, como sou muito preocupada com os temas éticos, confesso que coloco uma série de questões de âmbito mais deontológico e mais ético. Acredito que é um factor importantíssimo na produtividade, a minha questão é como vamos fazer a distribuição da riqueza, se vamos conseguir aproveitar o tema da automação e da inteligência artificial para sermos mais produtivos e, com isso, fazer uma melhor distribuição da riqueza.

MV: Sou uma optimista por natureza, mas os temas éticos são uma preocupação, a regulamentação da utilização da IA nas empresas é super importante e ter noção de que o próprio algoritmo pode estar enviesado. É preciso ter muita atenção quando se toma decisões sobre pessoas baseadas em algoritmos, ajuda, mas a decisão em si só baseada no algoritmo é um perigo. Claramente que as pessoas não vão ser substituídas.

PR: Os ganhos da produtividade é a parte que acho que tem mais potencial, a boa coordenação entre as previsões feitas pelas máquinas e pelas decisões tomadas pelos humanos, acho que vão ter repercussões complexas na produtividade. O risco é se o ritmo de capacitação das pessoas for inferior à necessidade, corremos o risco de gerar um número significativo de pessoas desempregadas e de baixa capacitação. E por isso nós, sociedade civil, empresas, Estado, devemos pensar menos em proteger os empregos e pensar mais em proteger as pessoas, porque, para alguns, a resposta não passa por empregos mas por outro tipo de protecção.

 

A ascensão do digital está a fragilizar ou a potenciar as human skills e, assim, o factor humano?
EC: Potenciar.

MV: Potenciar.

PR: Potenciar.

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