Pessoas de Vinil: o lado B dos profissionais e a dificuldade de “mudar o disco”

Reza a história (e o ChatGPT) que, na indústria da música, o lado A e o lado B estão associados directamente aos discos de vinil. Alguns artistas não escondiam que o lado A continha as canções mais comerciais, guardando para o lado B outras formas diferenciadas do seu trabalho, apesar de não tão aclamadas pela maioria do público. Eram, segundo os mesmos, canções, composições, experimentais e alternativas, mas também as mais reveladoras da sua essência.

Por Joana Russinho, People Enthusiastic & head of Human Resources na DLA Piper

 

Quando abandonamos os vinis e passamos para as pessoas, principalmente em contexto de trabalho, também recorremos a estas duas variações. O lado A aponta para um perfil adaptado ao contexto em que se opera, mais contido, formatado à cultura vigente e às responsabilidades que a função requer, e o lado B, aquele que muitas vezes tentamos deixar dentro de casa ou reservado aos que fazem parte de um círculo relacional mais próximo.

Sempre nos foi dito, ou feito sentir, qual o comportamento desejado para assumir um determinado perfil funcional, bem como a sugestão de que os problemas são para ser deixados em casa. Testes de avaliação de perfis comportamentais tendem a confirmar estes dois lados e as opiniões dividem-se no que respeita às causas e às consequências do ponto de vista da acção.

A verdade é que até na infância incutimos isto às nossas crianças quando educadores nos relatam, e nós nos convencemos, que da porta da escola para dentro os nossos filhos se transformam, positiva ou negativamente, mostrando um outro lado de si, comportando-se de outra forma que não a que nos habituámos a ver.

Mas o que dizem as novas gerações? Defensores da autenticidade, da ideia de trabalhar para um propósito, de uma vida saudável e sustentável? Confidenciam-me muitas vezes que não estão propensos a ser moldados, a ter duas versões de si mesmos.

Adaptam-se facilmente a uma cultura com a qual se identificam, mas não permitem que seja a cultura da organização a modificá-los.

Querem ser fiéis a si próprios, aos valores em que se fundamentam e às motivações que os mobilizam. Esperam ser respeitados pelo que são e não pelo que outros acreditam que possam vir a ser. E não considero que possamos falar de uma falta de humildade generalizada. Prefiro apelidar esta postura de corajosa, devido à autenticidade. Postura esta que também se observa em outras gerações. Quando o mundo nos obrigou a parar, reflectimos e fizemos escolhas. Hoje sabemos ser mais assertivos sobre o que não queremos e ainda bem.

Mudar o disco dá trabalho, cansa emocionalmente, tanto que às vezes nos esgota a ponto de nos perdermos. É bem mais agradável o sentimento de coerência, de verdade, de podermos ser quem somos e sermos valorizados por isso.

Daí também o papel critico do processo de recrutamento. Não é suficiente ter a certeza do que o candidato sabe fazer, urge descodificar se a pessoa que está à nossa frente se identificará e ficará feliz com a cultura que vai encontrar, para que o esforço da mudança do lado do disco seja praticamente inexistente. Pessoas que não mascaram nenhum dos lados em detrimento de outro são mais produtivas, sustentáveis e felizes, o que significa sempre valor acrescentado para a empresa em termos de clima organizacional, de qualidade, de compromisso e de referência.

Lembro-me de há uns anos ter pedido a um elemento de uma equipa um protótipo para uma newsletter que alimentaria, via e-mail, um projecto com mais de 100 pessoas espalhadas em diferentes geografias. O Pedro (nome fictício) era formal no trato, introvertido, contido e até um pouco rígido para a sua idade. Estava há pouco tempo na empresa, pelo que pouco o conhecia. O Pedro apresentou-me um protótipo 2.0 face ao que eu estava à espera. Construiu uma solução web-based, dinâmica e não unilateral que alimentou com toda a sua criatividade: vídeos de figuras públicas com falas elaboradas por si, fotografias com voz, entre outros. Nesse dia perguntei ao Pedro como o tinha feito. Estudei, respondeu. Gosto muito de criar. Incentivei o Pedro a tirar partido da irreverência que escondia e o impacto nos anos seguintes foi notório.

Embora os discos de vinil estejam a ressurgir nos últimos tempos, valerá o esforço de se continuar a insistir em separar o que nos torna únicos?

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