Não consegue dormir e sofre de ansiedade? Serão consequências do trabalho? No Dia Mundial da Saúde, uma psicóloga responde (e deixa dicas)

Para assinalar o Dia Mundial da Saúde, a Human Resources conversou com a psicóloga Liliana Dias, membro do Conselho de Especialidade de Psicologia do Trabalho, Social e das Organizações, com o objectivo de esclarecer o que implica um ambiente tóxico no local de trabalho.

 

O ambiente profissional condiciona a forma como os trabalhadores se sentem, tanto no local de trabalho como no dia-a-dia, assumindo um papel fundamental no bem-estar de cada um. Quando é tóxico, está associado à presença de riscos psicossociais relacionados com diversos factores, entre os quais a qualidade da liderança, os recursos disponibilizados aos trabalhadores e o suporte fornecido.

Não são apenas as metodologias utilizadas pela organização que afectam o trabalho dos colaboradores, também tudo o que é providenciado em termos de comunicação e orientação faz uma grande diferença no seu desempenho.

«Não falamos só de recursos físicos, mas de humanos também. A qualidade das relações estabelecidas é muito importante para alcançar resultados de produtividade desejados», esclareceu a psicóloga Liliana Dias, membro do Conselho de Especialidade de Psicologia do Trabalho, Social e das Organizações, à Human Resources.

 

Caraterísticas de um ambiente profissional tóxico

Esta realidade acontece quando os colaboradores têm menos recursos do que precisam, o que reduz a sua autonomia e nível de suporte por parte da organização. Por vezes, o foco das empresas é apenas em «desempenhos muito individualizados, com uma exigência muitíssimo elevada que não é compensada com o que é providenciado para as pessoas conseguirem desenvolver o seu trabalho», esclareceu Liliana Dias.

A toxicidade é resultado do nível de conflito nas empresas, agressividade, comportamentos de assédio moral, comunicação violenta e falta de respeito, tanto por parte das chefias como de colegas de trabalho. Como tal, a psicóloga alerta para o facto de esta característica não ser apenas típica de membros com cargos elevados, mas também de colegas.

«Apesar de a chefia ser importante, os comportamentos tóxicos acontecem por parte de outros elementos, pela sua própria personalidade ou por algum distúrbio de saúde mental que pode influenciar comportamentos como cinismo, toxicidade permanente, negativismo, falta de dedicação e de eficácia» segundo a especialista que notou ausência de produtividade por parte dos trabalhadores que criam conflito e perturbam os restantes.

O ambiente laboral é responsabilidade de todos os colaboradores e tem de ser monitorizado para não se atingir um nível de cansaço e desgaste extremo, o que é possível através da melhoria da qualidade das relações, dos recursos disponibilizados face às exigências e do equilíbrio entre a vida pessoal e profissional.

 

Quando a toxicidade profissional passa para a vida pessoal

É chamado o efeito spillover, ou seja, quando algo “transborda”. Ainda que exista quem acredite que é possível fazer uma separação e deixar o stress no trabalho, a verdade é que esta pressão passa para outros momentos e a toxicidade laboral acaba por ser replicada nas relações familiares. «Estamos mais irritáveis, temos muito mais tolerância e acabamos por criar conflitos no outro lado», advertiu Liliana Dias.

No entanto, esta situação pode ocorrer no sentido inverso, quando o nível de toxicidade das relações familiares é transportado para o local de trabalho. «Funciona nos dois sentidos, nós somos só uma pessoa apesar de acharmos que há uma separação entre a nossa pessoa profissional e pessoal. Por isso, se não conseguimos fazer bem esta transição não percebemos que estamos a levar para o contexto coisas que não fazem parte», explicou a especialista.

 

Consequências de mau ambiente na saúde mental

Trabalhar num local onde o ambiente é prejudicial não implica necessariamente que os colaboradores fiquem doentes, contudo aumenta os riscos, sendo por isso relevante que sejam mitigados e as organizações recorram a uma abordagem preventiva. Na óptica da psicóloga, a ansiedade e o stress não podem ser tidos em consideração «como algo anormal no contexto de trabalho porque faz parte e tudo depende de como a pessoa aborda o desafio».

O stress em si não é patológico e pode ser regulado com ferramentas individuais ou de grupo, tanto num contexto profissional como noutro, antes de atingir o que se apelida de distresse, ou seja, stress excessivo. Esse factor pode levar a stress crónico e eventualmente a uma síndrome de burnout, destacou Liliana Dias ao frisar que «o stress e a ansiedade não é por si algo negativo, é normal. No contexto que estamos a viver, dentro das organizações, mas também no contexto alargado, é normal sentir ansiedade e momentos de maior pressão».

A pandemia, a guerra e agora a crise económica são elementos que fazem parte do contexto actual e, inevitavelmente, criam mais riscos exigindo que cada um desenvolva estratégias para conseguir «relativizar as situações e encontrar formas de canalizar a sua energia para acções produtivas, que vão mitigar ou resolver problemas, tanto dentro do ambiente de trabalho como fora».

 

Como alcançar equilíbrio entre a vida pessoal e profissional

O auto-cuidado, a gestão do stress, uma boa alimentação e a prática de exercício físico são comportamentos que ditam os pilares da saúde e do estilo de vida, dado que a existência de boas práticas torna mais propício o alcance de um equilíbrio entre a vida pessoal e profissional.

Dependendo do contexto, é preciso adoptar estratégias a nível individual e de grupo para se identificar os factores de stress e dar resposta às questões: O que está a correr mal? Porquê sentimos tanta pressão? É uma pressão que se mantém demasiado tempo e que não temos capacidade de recuperar?

Após serem reconhecidas as falhas, é preciso repensar processos, práticas de trabalho, redesenhar métodos e redistribuir responsabilidades, aconselhou a psicóloga ao reiterar que, muitas vezes, os colaboradores não sentem que esta abordagem é feita por parte das organizações e acabam por se sentir desamparados.

Identificar se o stress está só relacionado com o trabalho ou se pode também derivar da vida pessoal implica introspecção individual para que se consiga perceber os factores que levam à ansiedade, podendo derivar da vida laboral ou familiar. «Estamos sempre expostos a stress que não vem apenas de motivos profissionais», comentou a especialista ao realçar os sinais físicos e mentais como importantes indicadores para reagir a esta sensação.

É fundamental perceber o que está a contribuir de forma mais acentuada, o que pode ser feito com um técnico ou directamente com um responsável na empresa, numa conversa franca para explorar o que está a desgastar o colaborador. Ainda que não se consiga perceber exactamente a quantidade associada às diferentes origens do stress, é possível identificar onde o foco é maior e intervir nas áreas mais críticas.

Se o stress derivar de factores externos a acção deve debruçar-se sobre eles dentro das várias possibilidades, tais como negociar, dar feedback à chefia sobre o que está a correr menos bem, expor a razão pela qual o seu desempenho está a ser afectado e sugerir o que se pode fazer de forma diferente. Mesmo que não seja possível alterar a carga do trabalho, pode-se mudar a metodologia.

 

Stress crónico

A cronicidade nas experiências de stress é outro dos factores a ter em atenção, ou seja, se existe uma constante, por exemplo, o ritmo cardíaco está sempre acelerado, a pessoa transpira imenso, sente-se muito cansada, tem dificuldades de concentração e atenção e não consegue recuperar nos dias de descanso. «Estes são os indicadores preocupantes assim como a alteração do comportamento social», avisou a psicóloga.

Quando alguém está prestes a ter uma vivência de stress crónico tem menos disponibilidade para os outros, começa a sentir mais irritabilidade, cria conflitos e altera o seu comportamento. O cansaço, falta de motivação, a intransigência e a flexibilidade são sinais óbvios assim como problemas gástricos ou de pele, ataques de ansiedade inexplicáveis, queda de cabelo e grandes oscilações de peso.

 

Como podem as empresas e chefias contribuir para uma boa saúde (mental e física) dos trabalhadores

Apesar de os programas dedicados ao bem-estar promovidos pelas empresas serem pertinentes, nem sempre contribuem para os aspectos mais importantes. «O que melhora a saúde mental em contexto de trabalho são as condições em que as pessoas trabalham e os recursos que têm disponíveis», expressou Liliana Dias. Não são eventos negativos, no entanto, na opinião da especialista, «é uma medida que não vai actuar nos factores causais do stress».

«É preciso identificar as fontes de stress; é necessário procurar soluções para a forma como se trabalha, para agarrar a oportunidade de novas ferramentas de trabalho; é necessário uma liderança mais proactiva e que dá autonomia às pessoas para tomarem decisões», notou a psicóloga ao defender que estas acções têm um maior impacto do que a ginástica laboral que não actua nos factores que mais provocam stress, ou seja, a fonte do problema.

Estas iniciativas são eventos momentâneos e os problemas devem ser endereçados «de forma constante e continuada, escutando os trabalhadores», propôs a psicóloga ao realçar que, por norma, quem participa mais activamente são os colaboradores que estão melhor. «Quem não está bem não tem capacidade, disposição ou energia porque nem consegue sequer gerir as tarefas diárias, muito menos um evento extra.»

 

O que podem as empresas fazer de forma diferente

As organizações têm uma grande responsabilidade não só de monitorizar a saúde dos colaboradores como de indicar soluções, o que pode ser feito com recurso a um diagnóstico de riscos psicossociais que «é o melhor medidor de stress e identifica factores que vão muito para além do indivíduo, tais como a organização e distribuição das tarefas, a forma como a liderança e a comunicação é feita e a percepção do equilíbrio entre o trabalho e a família».

Após serem detectadas as causas é preciso, em conjunto com líderes capacitados, conseguir definir acções concretas e implementá-las para mitigar os problemas, aconselhou a especialista ao sugerir que se desenhem benefícios capazes de endereçar as necessidades dos trabalhadores e medir o impacto das iniciativas, não só financeiro, mas também social, ou seja, a participação e reacção dos colaboradores e se há benefícios na sua saúde ou não.

Ter uma perspectiva de medição e avaliação é essencial, o que não se consegue com uma iniciativa por semana ou várias ao longo do mês, mas através de um ciclo continuo de acções. Mesmo que a saúde mental pareça algo intangível é possível torná-la tangível com indicadores-chave que permitem «medir e perceber», nomeadamente assiduidade, baixas médicas relacionadas com motivos de saúde psicológica, níveis de produtividade e desempenho financeiro da organização.

 

Conselhos para controlar o stress

– Saber que há ferramentas e competências que se podem desenvolver para a gestão do stress;

– Adoptar estratégias mais focadas no relaxamento e na parte corporal, bem como partilhar emoções com os outros, explicar sentimentos e analisar o padrão emocional;

– Fazer exercício físico ajuda, até do ponto de vista neurotransmissor, dado que gera hormonas que ajudam a regular o stress e a falta de sono;

– Ter em conta o contexto em que vivemos e relativizar as situações;

– Sair do trabalho a horas porque estar fisicamente no mesmo local demasiado tempo é muito desgastante e ter outro contexto num ambiente com menos estímulos que permita desconectar e desligar das actividades profissionais;

– Escolher tarefas tranquilizadoras adequadas sem criar uma rotina, reconhecendo que o seu efeito é subjectivo. Alguns apostam na estratégia do corpo outros na mente, o importante é existirem várias ferramentas conforme os momentos de desgaste.

– Não considerar que o mindfullness resolve os problemas e perceber que deve ser combinado com uma estratégia activa de resolução. Ainda que tenha imensos benefícios cientificamente provados, quando se vive uma situação problemática no trabalho não é muito útil para resolver efectivamente a situação.

 

Para colmatar as dificuldades encontradas pelas empresas e trabalhadores, a Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP) renovou o portal Encontre Uma Saída, onde estão disponibilizadas novas funcionalidades e existe a opção de encontrar psicólogos pela especialidade e área de intervenção.

«O objectivo é ajudar quem precisa dos serviços de um psicólogo a encontrar os contactos mais facilmente, consoante as necessidades mais específicas que possa ter. Neste Dia Mundial da Saúde que se aproxima, é importante lembrar que não há saúde sem saúde psicológica e que os serviços dos psicólogos devem estar acessíveis à população», reiterou o Bastonário da OPP, Francisco Miranda Rodrigues.

 

 

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