Teletrabalho. As dúvidas que persistem (do subsídio de alimentação aos acidentes de trabalho)

O combate à pandemia provocada pela COVID-19 levou o Governo a adoptar um conjunto alargado de medidas que vieram complementar a legislação laboral já existente, entre as quais se destacam a criação de novas regras aplicáveis ao teletrabalho.

 

Por Catarina Bahia, Associada da Abreu Advogados

 

Apesar de a prestação de actividade em regime de teletrabalho já estar há muito regulada no Código do Trabalho, a verdade é que até ao confinamento decorrente da pandemia tratava-se de um instrumento apenas residualmente utilizado por empresas e trabalhadores.

Em 2020, o recurso a esta forma de prestação de trabalho sofreu um aumento exponencial, sendo que, no início de Maio, de acordo com um estudo do Instituto Nacional de Estatística (INE), 58% das empresas portuguesas tinham parte ou a totalidade dos seus trabalhadores em teletrabalho. Aliás, foi a própria Direcção-Geral da Saúde (DGS) que, em Fevereiro deste ano (ainda antes da declaração do Estado de Emergência), aconselhou às empresas o recurso a formas alternativas de trabalho, designadamente o teletrabalho.

Segundo as regras gerais constantes do Código do Trabalho, a prestação de trabalho neste regime depende da celebração de um contrato escrito, o que pressupõe o acordo entre as partes.

Não obstante, o combate à pandemia levou o Governo a alterar estas regras, sem contudo proceder a qualquer alteração ao regime do teletrabalho contido no Código do Trabalho, mas, em determinadas circunstâncias, a prestação de teletrabalho passou a poder ser unilateralmente imposta pelo empregador ou pelo trabalhador, desde que as funções em causa fossem compatíveis com a prestação de actividade em teletrabalho.

Portanto, durante a pandemia, assistimos à vigência paralela de diferentes regimes para uma mesma realidade que é o teletrabalho. E o próprio regime específico vigente durante a pandemia tem vindo a sofrer alterações em função da evolução do próprio surto pandémico.

Depois de um período em que o Governo determinou a obrigatoriedade do teletrabalho sempre que as funções exercidas pelo trabalhador o permitissem, desde o início de Junho [até ontem, tendo voltado a ser obrigatório em 121 concelhos] que o teletrabalho deixou de ser obrigatório, passando assim a ser necessário o acordo entre o empregador e o trabalhador, salvo determinadas excepções, nomeadamente se o trabalhador se encontrar abrangido pelo regime excepcional de protecção de imunodeprimidos e doentes crónicos, ou seja portador de deficiência com grau de incapacidade igual ou superior a 60%.

Através da Resolução de Conselho de Ministros publicada a 11 de Setembro, o governo decretou situação de Contingência em todo o território nacional. Relativamente ao teletrabalho, a referida Resolução do Conselho de Ministros determina que o empregador deve proporcionar ao trabalhador condições de segurança e saúde adequadas à prevenção de riscos de contágio da pandemia, podendo ser adoptado o regime de teletrabalho nos termos previstos no Código do Trabalho.

A legislação determina ainda que a adopção deste regime é obrigatória quando requerida pelo trabalhador, sempre que as funções desempenhadas o permitam e caso este, mediante certificação médica, se encontre abrangido pelo regime excepcional de protecção de imunodeprimidos e doentes crónicos, seja portador de deficiência, com grau de incapacidade igual ou superior a 60%, e sempre que os espaços físicos e a organização do trabalho não permitam o cumprimento das orientações da DGS e da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) sobre esta matéria.

 

Dúvidas práticas
O aumento do recurso a este instituto veio suscitar uma série de dúvidas práticas sobre o regime aplicável quanto ao teletrabalho, nomeadamente:

Subsídio de refeição. Uma das questões que se tem colocado é a de saber se o subsídio de refeição é devido nestas circunstâncias. Apesar de entendermos que do ponto de vista jurídico não existe tal obrigação (salvo acordo das partes nesse sentido), uma vez que, na sua essência, este subsídio visa compensar o trabalhador por tomar a refeição fora da sua residência – o que não sucede caso o trabalhador esteja a trabalhar a partir de casa –, a verdade é que o Governo, a ACT e a DGERT [Direcção-Geral do Emprego e das Relações de Trabalho] já tomaram posição que contraria este entendimento. Estas entidades sustentam que os trabalhadores aos quais antes do recurso ao teletrabalho fosse pago subsídio de refeição têm direito a continuar a receber este pagamento.

Horário de trabalho. Outra das questões que tem sido discutida prende-se com saber se os trabalhadores em regime de teletrabalho estão obrigados a cumprir um horário rígido de trabalho. A este respeito, o Código do Trabalho determina que o trabalhador em teletrabalho está sujeito aos mesmos direitos e deveres dos demais trabalhadores. De acordo com as recomendações da ACT, as empresas devem ter em conta alguma flexibilidade de horários e de distribuição de tarefas com prazo, considerando, por exemplo, que o trabalhador pode coabitar com pessoas com necessidades especiais (nomeadamente pessoas em isolamento profilático). Mais recomenda a ACT que, no quadro actual da pandemia, o teletrabalho deve atender à necessidade de alguma flexibilidade, sem contudo se deixar de assegurar uma organização eficaz do trabalho.

Assim, tem vindo a ser entendido que deve existir de facto alguma flexibilidade, tendo no entanto em mente que o trabalhador continua vinculado aos seus deveres laborais, entre eles prestar o seu trabalho com pontualidade e assiduidade, e que em caso de desrespeito dos mesmos poderá ser alvo de procedimento disciplinar.

Por outro lado, importa ainda ter presente que a legislação actualmente em vigor veio determinar que o empregador pode alterar a organização do tempo de trabalho, ao abrigo do respectivo poder de direcção. As empresas podem implementar escalas de rotatividade de trabalhadores entre o regime de teletrabalho e o trabalho prestado no local de trabalho habitual, diárias ou semanais, horários diferenciados de entrada e saída ou horários diferenciados de pausas e de refeições, dentro dos períodos máximos do período normal de trabalho e com respeito pelo direito ao descanso diário e semanal dos trabalhadores.

Local de trabalho em regime de teletrabalho. Uma outra questão que tem vindo a levantar dúvidas prende-se com saber se o trabalhador sujeito a este regime tem de prestar o seu trabalho a partir do seu domicílio, ou se o poderá fazer a partir de um outro local. O regime do teletrabalho vem definido no Código do Trabalho como a prestação laboral realizada com subordinação jurídica, habitualmente fora da empresa e através do recurso a tecnologias de informação e de comunicação. Tipicamente, o trabalhador em regime de teletrabalho presta o seu trabalho a partir de casa com recurso a computador e telemóvel. Contudo, o regime não impõe que tal aconteça, podendo, em alternativa, o trabalho ser realizado a partir de um outro local. Em todo o caso, a definição prévia do local de trabalho é vantajosa, por exemplo em caso de ocorrência de acidente de trabalho.

Acidentes de trabalho. Mas será que o trabalhador em teletrabalho se encontra abrangido pelo seguro de acidentes de trabalho? Importa relembrar que a lei estabelece um princípio de igualdade de tratamento do trabalhador em regime de teletrabalho, do qual resulta que o trabalhador que beneficie deste regime tem os mesmos direitos e deveres que os demais, incluindo no que se refere à reparação de danos emergentes de acidente de trabalho. Assim, os trabalhadores que se encontrem em teletrabalho continuam cobertos pelo seguro de acidentes de trabalho, que é obrigatório. Mas há um aspecto relevante a considerar. É que um acidente de trabalho é aquele que se verifica não só no tempo de trabalho, como no local de trabalho. Posto isto, e dada a flexibilidade que o actual regime confere, torna-se fundamental a definição prévia do local de trabalho de cada trabalhador, devendo este ser comunicado pelo empregador à seguradora. Só deste modo se evitará a incerteza quanto à classificação de um acidente como acidente de trabalho, e consequente pagamento da compensação ao trabalhador.

Em face das questões que a intensificação do recurso ao teletrabalho tem suscitado, algumas das quais referimos a título exemplificativo, tem vindo a reclamar- se a sua regulamentação para garantir, por um lado, o reforço dos direitos laborais e, por outro, uma melhor conciliação entre a vida pessoal e profissional. Esperemos pelos próximos passos do Governo nesse sentido.

Este artigo foi publicado na edição de Outubro (nº. 118) da Human Resources, nas bancas.

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