Transição digital: Competências, vantagens e inconvenientes

Por Paulo Teixeira, bastonário da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

 

Incontornável e imparável, a transição digital continua, no entanto, a suscitar questões, hesitações e, até, resistências. No universo da Justiça não é diferente e ainda há um longo caminho a trilhar para que, além de uma verdadeira e efectiva transição digital, esta possa acontecer de forma inclusiva e, permitam-me a redundância, com justiça.

Sim, esta é uma transição que tem de acontecer com justiça para todos os envolvidos – para quem recorre ao sistema de Justiça e para quem nele trabalha. A infoexclusão ainda não é um fenómeno ultrapassado, o acesso universal aos meios ainda não é uma realidade e a preferência pelo digital ainda não é transversal a todas as áreas e assuntos. E, se é verdade que muito já se fez, também o é que muito ainda há por fazer.

A Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução tem trabalhado para ser parte da solução e das respostas, fazer a diferença no seu desenho e implementação, inovar e, assim, contribuir para uma transição digital com impactos positivos na vida das pessoas, das empresas e, claro, da Justiça e dos profissionais que a servem. E tem conseguido. Prova disso está em ferramentas como o Sistema de Suporte à Actividade dos Agentes de Execução, o e-Leilões, o Registo Online de Actos de Solicitador ou o GeoPredial. Pela permanente (e eternamente inacabada) aposta na interoperabilidade, na segurança, na usabilidade e na análise dos dados, estes instrumentos têm contribuído para a agilização do funcionamento da Justiça e para a defesa dos interesses e direitos dos cidadãos. Como? Conectando entidades e bases de dados, aumentando a transparência e o alcance, contribuindo para uma formação dos profissionais mais ampla nas competências abrangidas e mais exigente do ponto de vista tecnológico. Ou seja, corroborando que o digital vem, sim, complementar a nossa intervenção, substituindo-a apenas quando, pelo carácter mecânico e repetitivo, isso acaba por ser, na verdade, sinónimo de libertação e de valorização do que só o ser humano pode e sabe fazer.

Deixo apenas alguns exemplos. É claro que uma penhora de saldos bancários pode ser feita num clique, mas só o agente de execução poderá avaliar devidamente como conduzir um processo executivo, protegendo todas as partes envolvidas. É claro que, com meras orientações, um software pode conseguir sugerir os limites de uma propriedade, mas só o solicitador poderá interpretar informações de diferentes fontes e apoiar na superação de eventuais conflitos. É claro que, através de fotos, uma plataforma pode avaliar o estado de um determinado bem, mas só o agente de execução poderá ir ao local atestar o que está em causa. É claro que uma aplicação pode verificar a legalidade de um determinado documento, mas só um solicitador saberá interpretar e salvaguardar excepções e especificidades.

Os rápidos progressos tecnológicos podem desafiar as estruturas jurídicas tradicionais. E, partindo desta certeza, também não há dúvidas de que, perante avanços como a inteligência artificial, a tecnologia blockchain ou a ciência dos dados, que trazem novas exigências, designadamente nos campos da privacidade e da cibersegurança, temos a oportunidade de escolher. Chegados aqui, há duas opções: estabelecer prioridades com base num critério meramente quantitativo e apenas ambicionar fazer mais, gastando menos e usando menos recursos humanos, sem parar para avaliar se alguém, entretanto, ficou para trás, ou investir tendo em vista fazer melhor nas várias dimensões, privilegiando a sustentabilidade e sob um olhar holístico e informado.

É esta a decisão que temos de tomar diariamente, também na Justiça. E, para isso, a transição digital não pode ter uma venda nos olhos. Tem de ser feita com, para e pelas pessoas. Tem de as ver e, assim, ser alicerce de um Estado de Direito sólido, assente em profissionalismo e rigor, mas também em tolerância e empatia. O diálogo entre as pessoas tem, portanto, de ser o primeiro passo em direcção a um pleno diálogo entre entidades e plataformas. Acredito que só assim poderemos, um dia, vir a encurtar o título deste artigo e ousar falar apenas em “vantagens”.

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