Um orçamento com pouca visão: as principais propostas e o que não está (e devia estar)

«A proposta apresentada pelo Governo traduz-se num documento pouco ambicioso, pouco imaginativo e longe de responder às exigências do momento.» 

 

Por Isaque Ramos, sócio na área de Fiscal da PLMJ 

Foi apresentada, pelo Governo, no passado dia 12 de Outubro, a Proposta de Lei do Orçamento do Estado (OE) para o ano de 2021. Esta Proposta de Lei surge num momento de crise económica, financeira e social, desencadeada pelo novo coronavírus SARS-CoV2, responsável pela propagação, a nível mundial, da doença COVID-19.

Ainda que não nos faltem, historicamente, exemplos de Orçamentos do Estado apresentados em situações económicas difíceis e de grande incerteza, a verdade é que se esperava, porventura com excessivo optimismo, que a actual Proposta de Lei tivesse como preocupação central a estabilização económica e financeira das empresas, sejam elas de pequena, média ou grande dimensão e, simultaneamente, medidas de estímulo à manutenção e criação de novos postos de trabalho.

As medidas de natureza fiscal aprovadas ao longo de 2020 e destinadas a absorver o primeiro embate da pandemia – por exemplo, a introdução do Crédito Fiscal Extraordinário do Investimento (CFEI II) ou o regime temporário de reporte de prejuízos – podia muito bem ter servido como o mote para uma reforma mais abrangente baseada numa visão holística do sistema fiscal. Porém, a proposta apresentada pelo Governo traduz-se num documento pouco ambicioso, pouco imaginativo e longe de responder às exigências do momento.

 

Ao nível das famílias

Ao nível das famílias, a Proposta de Lei de Orçamento do Estado apresenta um conjunto de medidas que se centram, se não exclusivamente, pelo menos na sua grande maioria, no fomento do consumo.

Começando pelo muito propalado ajustamento das tabelas de retenção na fonte de IRS, dir-se-á, desde logo, que se trata de uma manobra de mera comunicação na medida, em que, ao contrário do que se quer fazer parecer, não implica uma qualquer redução de impostos, mas sim a mera aproximação das retenções na fonte ao imposto efectivamente devido no final de cada ano.

Convirá recordar sobre esta matéria que, segundo os dados disponíveis, em 2019, o Estado reembolsou aos contribuintes cerca de 3 mil milhões de euros, o que significa, por um lado, que as tabelas de retenção na fonte se encontram completamente desajustadas da realidade e, por outro, que os contribuintes, à custa dos rendimentos do seu trabalho, têm financiado o Estado a uma taxa de 0%.

Mas o mais relevante nesta matéria é o facto do Governo, propositadamente ou não, se ter olvidado dos prestadores de serviços, os chamados “recibos verdes” que, na sua generalidade, estão sujeitos a uma taxa fixa de 25% de retenção na fonte que não é alterada nesta Proposta de Lei.

Uma segunda medida apresentada é o designado IVAucher que se destina a apoiar os sectores mais afectados pela pandemia, entre os quais, a restauração, o alojamento e a cultura.

Este programa possibilita ao consumidor final acumular, durante um trimestre, o valor total do IVA suportado em consumos naqueles sectores de actividade que, em cada trimestre, será convertido num desconto em consumos efetuados nestes mesmos setores no trimestre seguinte.

Não obstante careça de regulamentação, parece uma medida interessante na medida em junta o combate à fraude e evasão fiscal com políticas de incentivo ao consumo em áreas específicas. Aguarda-se com expectativa a regulamentação de modo a poder efectuar-se uma avaliação mais adequada.

Ainda o nível do IRS, a Proposta de Lei do Orçamento do Estado possibilita a dedução à colecta do IRS um montante correspondente a 15% do IVA suportado por qualquer membro do agregado familiar nas atividades relacionadas com ensino desportivo e recreativo e atividades de ginásios – fitness.

Embora se possa considerar como positiva, trata-se de uma medida com pouco impacto na fatura fiscal dos contribuintes uma vez que o limite máximo das deduções não é alterado. Parece-nos que a situação atual exigiria, precisamente, que se revisitassem os limites às deduções à coleta do IRS aumentando-os substancialmente para a classe média.

 

Ao nível empresarial

No que ao mundo empresarial diz respeito, a Proposta de OE podia e devia ter sido mais ambiciosa, esperando-se que viesse a contemplar medidas fiscais inovadoras com um impacto tendencialmente transversal, quer ao nível do próprio tecido empresarial, quer ao nível da atração de investimento.

Nesta matéria, e ao nível das medidas previstas, destaca-se a proposta de não aplicação do agravamento das tributações autónomas em 10% prevista para as entidades que apurem prejuízos fiscais. Ainda que esta medida seja de caráter transitório, ou melhor, tenha a sua vigência limitada aos períodos de tributação de 2020 e 2021, vem resolver uma incoerência que as medidas temporárias adotadas aquando da primeira vaga da pandemia tinha gerado: concedia-se um tratamento especial aos prejuízos fiscais apurados durante a fase pandémica mas mantinha-se o agravamento das tributações autónomas. Sabendo-se que as tributações autónomas constituem, para muitas empresas, o maior encargo de natureza fiscal que suportam – na justa medida em que não dependem dos resultados – trata-se de uma medida óbvia.

Ainda assim, convirá referir que esta medida tem um carácter limitado. Apenas pode ser aproveitada por: (i) PMEs que tenham iniciado atividade em 2019, 2020 ou 2021, ou (ii) tendo iniciado atividade em períodos anteriores a 2019, (a) tenham obtido lucro tributável em um dos três períodos de tributação anteriores, e (b) tenham cumprido as suas obrigações declarativas nos dois períodos de tributação anteriores à aplicação deste regime transitório. Ficam, pois, de fora desta norma as empresas que tendo sido constituídas há mais tempo, se encontrem ainda numa fase de investimento ou até startups em fases embrionárias de desenvolvimento, o que não se compreende.

Ao nível dos benefícios fiscais, é de salientar, entre outras, a limitação do benefício (transitório) concedido para a manutenção de postos de trabalho. Segundo esta medida, as empresas (que não sejam PMEs) e que tenham registado um resultado líquido positivo em 2020, apenas podem beneficiar de apoios públicos e incentivos fiscais caso, durante o ano de 2021, mantenham o nível de emprego.

No campo dos benefícios é, ainda, criado o incentivo fiscal às acções de eficiência colectiva na promoção externa, que consiste na possibilidade das PMEs deduzirem, para efeitos de apuramento do lucro tributável e em 110% do respetivo valor, os gastos suportados em 2021 e 2022, com a participação conjunta em processos de promoção externa.

De referir que este tratamento discriminatório entre grandes e pequenas empresas compreende-se mal, sobretudo se tivermos em conta que durante a presente situação de emergência nacional, o objetivo deveria ser o de manter o emprego, independentemente de quem o cria, se grandes ou micro empresas.

Ainda no âmbito empresarial, a Proposta de Lei do Orçamento do Estado prevê que passam a estar sujeitas a IMT a aquisição de ações em sociedades anónimas quando: (i) o valor do seu activo resulte, directa ou indirectamente, em mais de 50% de bens imóveis situados em território português e (ii) quando, por aquela aquisição, algum dos acionistas fique a dispor de, pelo menos, 75% do capital social ou o número de accionistas se reduza a dois casados ou unidos de facto.

Trata-se de uma medida incoerente na técnica e, sobretudo, errada no timing. Na técnica, porque apresenta diferenças relativamente à regra já existente para as sociedades de responsabilidade limitada. No timing na medida em que estas sociedades são tipicamente utilizadas para estruturar grandes investimentos imobiliários. Se associada ao já anunciado fim dos vistos gold para investimentos imobiliários em Lisboa e Porto, verifica-se a aprovação de duas medidas que reduzem a liquidez do mercado imobiliário num ambiente económico já por si adverso. Ensina a ciência económica que este tipo de medidas se adota em contra ciclo.

 

O que não está (e devia estar)

Analisados as principais propostas de natureza fiscal vertidas na Proposta de Lei, resta agora referir o que, do nosso ponto de vista não está, mas deveria estar.

Desde logo, a ao nível do IRS, a Proposta de Lei de Orçamento do Estado tem uma omissão relevante e que passou pela não eliminação do regime da transparência fiscal, tantas vezes solicitado por diversos sectores.

Em suma, este regime determina que um conjunto muito alargado de profissões, entre as quais médicos, advogados, arquitetos, engenheiros ou consultores em geral, sejam penalizados por se organizarem em estruturas societárias, na justa medida em que os resultados dessa sociedade lhe são imputados pessoalmente e tributados em sede de IRS.

Na prática, e sempre que as profissões não são reguladas, os contribuintes têm encontrado formas mais ou menos imaginativas de evitar a sujeição ao regime mas, ainda assim, seja por imposição legal, seja por não estarem dispostos a adoptar estruturas de capital meramente artificiais, há muitas sociedades que continuam abrangidas pelo regime.

Do ponto de vista fiscal, este regime incentiva (para não dizer que impõe) a distribuição da totalidade do resultado das sociedades aos sócios, até para que estes disponham de liquidez pagar o IRS devido, prejudicando, assim, a constituição de reservas para fazer face a momentos de crise como o actual.

A actual crise demonstra que, por este facto, estas sociedades que, note-se, empregam milhares de trabalhadores, estavam menos preparadas para fazer face a situações de crise. De acordo com o teor da Proposta de Lei, parece que Governo não retirou nenhum ensinamento a este nível.

Em segundo lugar, é por demais evidente a ausência de medidas de fundo que visem a criação de postos de trabalho. A repristinação do benefício à criação líquida de postos de trabalho revogado em 2018 – por razões que se desconhecem – e ainda que durante um período limitado de tempo, seria uma medida óbvia, mas que ficou na gaveta.

Ficaram também por aprovar medidas tendentes ao reforço da capitalização das empresas. É sabido que um dos principais problemas estruturais que afeta as nossas PMEs é o elevado endividamento, em geral com recurso ao crédito bancário. Deveriam explorar-se novas formas de financiamento via mercado de capitais e, do ponto de vista fiscal, iniciar-se um processo de equiparação do tratamento concedido à remuneração do capital alheio e do capital próprio.

Por fim, deveria iniciar-se um processo de reforma da tributação das PMEs. Quando analisamos os mais importantes rankings de competitividade das economias (promovidos, entre outros, pela OCDE ou pelo Banco Mundial) verifica-se que um dos principais problemas que se aponta à nossa economia é a temática da fiscalidade e, em especial, a respectiva complexidade e excesso de burocracia. De acordo com aqueles rankings, as horas necessárias para cumprir as obrigações fiscais em Portugal estão ao nível das exigidas em economias em desenvolvimento.

É, pois, essencial, que se revisite o regime de tributação das PMEs, por exemplo, (i) simplificando as respectivas obrigações declarativas e de reporte, (ii) repensando as tributações autónomas, (iii) e promovendo a sua capitalização.

Esperamos que a fase de debate na Assembleia da República que agora se inicia, permita melhorar o documento apresentado pelo Governo. É a realidade que o impõe.

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