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Estórias com Propósito: Cuidar da espera
Quão diferente seria o nosso mundo se nos dedicássemos mais a escutar, a procurar entender, a cuidarmos da espera de quem nos rodeia?
Por Afonso Borga, responsável de Responsabilidade Social da Auchan Retail Portugal
Passava-se o Verão de 2017 e estava num barco a caminho de Lesbos. A última ilha da Grécia. A primeira para tantos que tentam diariamente a sobrevivência e a luta por uma vida de paz.
Tinha acabado há poucos meses uma licenciatura em Serviço Social e estagiava no GRACE, uma associação de empresas que me abriu as portas para o mundo da sustentabilidade corporativa e para o início de uma carreira profissional numa área que me apaixona, a responsabilidade social.
Já há algum tempo que vinha a planear este momento, após outras experiências de voluntariado nacional e internacional. O objectivo era dedicar um tempo ao serviço de tantos, por quem sempre senti o meu maior respeito, que se vêem forçados a abandonar as suas casas. Em 2023, a agência de Refugiados da ONU (Organização das Nações Unidas) indicava que quase 45 mil pessoas chegaram à Grécia a partir da Turquia, mais do dobro do que em 2022.
A ilha grega de Lesbos, estava na linha da frente da crise de refugiados na Europa. Milhares de pessoas, a maioria sírios que escapavam da guerra civil, desembarcavam nas praias todos os dias. Em Lesbos estive como voluntário de uma organização não governamental (ONG) grega que trabalhava essencialmente no campo temporário de Kara Tepe, onde se encontravam maioritariamente famílias, à espera de serem realojadas em algum país. No campo, tinham acesso a comida, casas de banho públicas, posto de saúde e uma lavandaria. Ali perto situava-se Moria, que chegou a ser considerado o maior campo de refugiados da Europa.
A nossa função enquanto voluntários passava por apoiarmos nas actividades diárias que a ONG, em conjunto com outras organizações, desenvolvia no campo, em particular para as muitas crianças, desde ateliês e jogos a sessões de estudo de inglês, língua importante para o seu processo de inclusão. No fundo, estávamos ali para ajudar a “cuidar da espera”, expressão usada pela ONG portuguesa PAR (Plataforma de Apoio aos Refugiados), também presente no campo com outros voluntários portugueses.
Os dias em Kara Tepe eram ocupados com brincadeiras e jogos, protegidos do sol que queimava em pleno mês de Agosto. Mas os finais de tarde eram diferentes. Juntávamo-nos em equipas para jogarmos futebol num campo meio improvisado junto ao “contentor” onde funcionava a ONG. Os rapazes no campo chamavam-me Cristiano Ronaldo, não pelas minhas habilidades em jogar futebol, que, acreditem, não são muitas, mas por ser português e passar as tardes a jogar futebol com eles. Curioso o poder deste desporto universal que, independentemente de barreiras linguísticas ou culturais, tem a capacidade de unir pessoas com diferentes nacionalidades e credos, para além de ser uma oportunidade e um incentivo para partilhar histórias e trocar “dois dedos de conversa”.
Aquele tempo que passei em Lesbos ensinou-me o poder da escuta e da empatia. De dedicar tempo do meu dia a ouvir as histórias num inglês muitas vezes improvisado ou com a ajuda de tradutores online, de pessoas que, em situações inimagináveis para alguém que, como eu, sempre teve a felicidade de viver em paz, se viram forçadas a abandonar o seu lar. Uma lição para os nossos dias, que fazemos parecer sempre tão agitados, numa correria desenfreada, e nem sempre com a disposição certa para ouvirmos o “outro”. Quão diferente seria o nosso mundo se nos dedicássemos mais a escutar, a procurar entender, a cuidarmos da espera de quem nos rodeia?
Hoje Kara Tepe, da forma como conheci, já não existe. Um grande incêndio em Moria, que terá tido origem em protestos dos refugiados pelas poucas condições sanitárias, destruiu grande parte do complexo, que acabaria por ser encerrado permanentemente e levou a que um novo campo fosse construído, muito maior e com capacidade para albergar também quem estava em Kara Tepe.
De Lesbos chegam por vezes notícias que alertam para a contínua degradação das condições de milhares de famílias que continuam à espera, com vidas em suspenso. Até quando?
Este artigo foi publicado na edição de Janeiro (nº. 169) da Human Resources, nas bancas.
Caso prefira comprar online, tem disponível a versão em papel e a versão digital.