A nova presunção de laboralidade dos prestadores nas plataformas digitais. Não sabe o que significa? Uma advogada explica

Se, já antes da pandemia da doença COVID-19, a revolução tecnológica imperava a um ritmo assaz, a verdade é que, por conta dos períodos de confinamento, a mesma proliferou a olhos vistos. Assim, e se no que ao ordenamento jurídico português respeita, o trabalho em plataformas digitais não era uma realidade assim tão presente, esse cenário mudou completamente a partir de Março de 2020.

Por Ana Rita Ferreira, advogada na DOWER-Law Firm

 

Para uns, o trabalho em plataformas digitais foi a forma encontrada para sobreviverem à forte crise económica provocada. Para outros, o trabalho em plataformas digitais permitiu, de uma maneira simples e rápida, o acesso a bens de primeira necessidade sem precisarem de sair de casa. Actualmente, qualquer actividade pode, hipoteticamente, ser realizada através de uma plataforma digital.

São, portanto, inegáveis as vantagens que a economia colaborativa acarreta. Proporciona maior flexibilidade, receitas adicionais e um número superior de oportunidades de emprego, principalmente para aqueles que sentem uma dificuldade acrescida em ingressar no mercado de trabalho dito tradicional.

No entanto, são também irrefutáveis as problemáticas que estão associadas a certos tipos de trabalho em plataformas digitais, as quais se reflectem na ausência de transparência e previsibilidade das condições contratuais e na insuficiente protecção social. Na verdade, vêem-se os respectivos prestadores privados de direitos essenciais, como o seguro de acidentes de trabalho, o local e materiais de trabalho e ainda no regime de protecção social. A nível remuneratório, não lhes está assegurada uma retribuição mínima mensal, o subsídio de férias e o subsídio de Natal e o pagamento de trabalho nocturno ou suplementar.

O primordial problema que até então se colocava prendia-se com a qualificação do vínculo contratual daqueles que prestam trabalho neste âmbito: são os mesmos meros prestadores de serviço, trabalhadores subordinados, ou estamos perante uma figura intermédia? São várias e dissemelhantes as decisões judiciais proferidas pelo mundo a este respeito.

Em Portugal, não existia uma resposta clara nem suficiente para esta questão. A Lei 45/2018, de 10 de Agosto destina-se apenas à actividade de transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma electrónica e o trabalho em plataformas digitais vai muito para além disso.

Muitas vozes se pronunciaram a este respeito. Umas defendendo uma actualização dos indícios de subordinação da presunção de laboralidade prevista no actual artigo 12.º do Código do Trabalho, os quais estariam pensados para uma era pré-digital. Outras considerando que a solução passaria por criar uma presunção de laboralidade específica para este tipo de trabalhadores. De facto, a circunstância de o prestador não estar sujeito a um horário de trabalho, não tendo que cumprir os tradicionais deveres de pontualidade e assiduidade, e de utilizar instrumentos de trabalho próprios, não poderia ser visto como um impedimento à qualificação do seu vínculo como sendo de trabalho subordinado.

Este tema não passou despercebido na Agenda do Trabalho Digno e diga-se, aliás, que foi talvez dos mais debatidos e cuja versão inicial da proposta foi mais vezes alterada.

Numa versão inicial, o artigo 12.-º A estabelecia uma presunção não só entre a plataforma e quem prestava a actividade, mas também entre este e o intermediário.

Esta versão veio a ser, e bem, em nossa opinião, alterada, resultando do texto final uma redação extensa e complexa, da qual urge uma protecção acrescida para quem presta a actividade neste tipo de plataformas.

De forma sumária, pode referir-se que a presunção de laboralidade é agora somente estabelecida entre a plataforma digital e o prestador de actividade que nela opera. Deixou de existir a presunção em relação ao intermediário, sem prejuízo de a plataforma poder invocar que a actividade é prestada perante o mesmo. Caberá ao Tribunal definir quem, nesse caso, é o empregador.

Ficou também claramente definido (sendo que esta era uma das questões mais levantadas, face ao texto da Lei 45/2018, de 10 de Agosto no sentido de que prevê uma remissão para o tradicional artigo 12.º do Código do Trabalho) que esta nova presunção de laboralidade se aplicará às actividades de plataformas digitais, relativas a transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma electrónica.

Ao mesmo tempo, é determinado que no caso de ser considerada a existência de um contrato de trabalho, passam a aplicar-se à relação entre o trabalhador e a plataforma as normas previstas no Código do Trabalho que sejam compatíveis com a natureza da actividade desempenhada, nomeadamente o disposto em matéria de acidentes de trabalho, cessação do contrato, proibição do despedimento sem justa causa, remuneração mínima, férias, limites do período normal de trabalho, igualdade e não discriminação, o que constitui um avanço gigante naquela que era, até então, a situação destes trabalhadores.

Não se ignoram as lacunas que ficam por suprir, nomeadamente uma eventual desadequação entre o regime previsto no Código do Trabalho, por exemplo, referente aos tempos de trabalho, e a realidade prática deste tipo de trabalhos. Ainda assim, consideramos que o avanço legislativo é de aplaudir.

Esperamos agora que esta tão almejada alteração legislativa não se torne letra morta e que a Autoridade para as Condições do Trabalho leve a cabo um intenso trabalho de fiscalização para combater a precariedade associada ao trabalho nas plataformas digitais.

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