António Saraiva: «Não podemos morrer da cura. É preciso alcançar um equilíbrio entre salvar vidas e salvar a economia»

Avizinham-se tempos difíceis, onde as falências e o desemprego surgem como panorama mais do que provável no pós pandemia Covid-19. António Saraiva, presidente do Conselho Geral e da Direcção da CIP – Confederação Empresarial de Portugal, não esconde que não vai ser possível salvar todas as empresas. Mas partilha o que acredita que pode ser feito para manter a economia a funcionar, preservando, desta forma, as empresas e o emprego. Pois o desemprego não se trava por decreto.

 

Por Sandra M. Pinto

 

Em entrevista à Human Resources, António Saraiva, analisa o actual contexto de crise, deixando uma mensagem «de estímulo para que as empresas continuem a demonstrar o seu valor e a sua capacidade de lutar contra a adversidade».

Se olharmos para o início de 2020, em que estado estava a indústria?
Bem, com taxas de crescimento e de exportação auspiciosas, a criar postos de trabalho e a contribuir para os bons resultados orçamentais que o País apresentou nos últimos anos. É verdade que surgiam já alguns sinais de preocupação, vindos principalmente da conjuntura internacional, com a desaceleração de algumas das principais economias europeias e destinos de exportação nacional, com as tensões geopolíticas e guerras comerciais, nomeadamente entre os EUA e a China, e com a concretização do Brexit.

Ainda assim, iniciámos 2020 num ambiente relativamente mais descomprimido, sem que alguns dos riscos que ensombravam as perspectivas económicas internacionais se tenham materializado, e com previsões para a produção e o emprego que faziam antever alguma recuperação da produtividade.

 

Quatro meses depois e uma pandemia, o que mudou?
Podemos dizer que, no limite, mudou o mundo. Ainda é cedo para conseguirmos medir a dimensão do impacto da actual pandemia na actividade produtiva, mas todas as previsões indicam que será brutal. Não nos iludamos: não vamos conseguir salvar todas as empresas. Há realidades empresariais que, pela sua dimensão, pelas suas características e pelo modelo de negócio, vão desaparecer. Há empregos que se vão perder. É uma inevitabilidade desta crise. As empresas que conseguirem ultrapassar esta crise vão enfrentar dificuldades nas cadeias de abastecimento, contracção do consumo, quebras nas exportações, em muitos casos, aumento do endividamento.

As previsões avançadas esta semana pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), e também pelo ministro das Finanças, são de facto alarmantes. Estamos a falar da pior recessão desde 1929. Para termos uma base de comparação, em 2009, no auge da crise financeira internacional, até então considerada a pior crise desde a Grande Depressão, a economia mundial caiu 0,1%. Hoje, o FMI aponta para uma contracção da economia mundial de 3% em 2020. Para Portugal, estima uma contracção de 8%. Estamos a falar de números avassaladores, com uma dimensão económica e social verdadeiramente inquietantes.

 

Nas empresas vossas associadas como é que esta situação está a ser vivida e gerida?
As empresas têm procurado adaptar-se à realidade actual, sempre que possível mantendo-se em funcionamento através dos modelos que as tecnologias hoje permitem, como é o caso do teletrabalho; noutros, onde isso não é possível, tomando todas as precauções de saúde pública, recorrendo ao uso generalizado de máscaras e luvas, trabalhando por turnos, com equipas rotativas, promovendo o máximo de distanciamento social possível.

Sabemos que, a maioria das empresas que optaram pelo lay-off, ou que suspenderam temporariamente a actividade, não o fizeram por indisponibilidade dos trabalhadores, mas antes por não terem clientes, encomendas ou por falhas nas cadeias de abastecimento.

Portanto, diria que parte das nossas empresas souberam rapidamente adaptar-se a novas formas de trabalho, adoptando as possibilidades permitidas hoje pelas novas tecnologias. Outras estarão num compasso de espera, aguardando o regresso a alguma normalidade, à normalidade possível, para retomarem a sua actividade.

 

Concorda com a implementação do Estado de Emergência?
A aplicação do Estado de Emergência foi uma inevitabilidade em virtude do objectivo prioritário de acautelar o bem da saúde pública. A realidade de outros países tem confirmado a importância de, desde cedo, desde o surgimento dos primeiros casos de pessoas infectadas com a Covid-19, serem tomadas medidas assertivas e contundentes de distanciamento social, de forma a travar a propagação descontrolada da doença.

E sabemos que, quanto mais cedo reunirmos as condições de regresso gradual à normalidade, de retoma gradual da economia, menor será a dor infligida na actividade económica, com os consequentes efeitos sociais que daí advém. Portanto, penso que os nossos responsáveis políticos tomaram a decisão que se impunha, em tempo útil, e espero que saibam ter a mesma acuidade no momento de reverter a medida.

 

Qual o maior desafio que se coloca hoje, Abril de 2020, às empresas?
Actualmente o maior desafio que as empresas enfrentam é claramente o de tesouraria. Sabendo nós que a esmagadora maioria das empresas portuguesas são micro e pequenas empresas, uma parte muito considerável não tem condições de liquidez para aguentar uma paragem total ou parcial da sua actividade durante dois ou três meses. E para isso é essencial que as linhas de apoio já anunciadas pelo Governo cheguem rapidamente às empresas, o que não está a acontecer. Dos 13 mil milhões de euros anunciados pelo Governo, até agora chegou zero às empresas. Esses atrasos não são compreensíveis, não são aceitáveis. É necessário alterar métodos, burocracias, para que estes auxílios cheguem de forma célere às empresas. Rapidez e eficácia é aquilo que se exige neste momento e foi aquilo que tive oportunidade de transmitir ao primeiro-ministro esta semana.

 

É esse desafio de alguma forma semelhante ao enfrentado no decurso da última crise? Em que difere?
A última crise foi, na sua génese, uma crise do sistema financeiro que evoluiu depois para uma crise das dívidas soberanas. O elevado nível de endividamento público de alguns países, entre os quais Portugal, combinado com o clima de desconfiança e de incerteza que se gerou nos mercados financeiros, elevou o preço de refinanciamento da dívida pública para níveis incomportáveis, criando assim uma crise de liquidez. Primeiro, no próprio Estado Central e, depois, em toda a cadeia financeira e económica, ou seja, no sistema financeiro nacional e, por fim, nas empresas e famílias com necessidades de recurso ao crédito.

Portanto, o desafio da falta de liquidez é comum. No entanto, as suas causas são em tudo diferentes e, creio, que a sua duração também o será. Porque, enquanto na crise de 2010-2014 foram necessários vários anos de medidas de austeridade, de retoma do controlo das contas públicas, de uma desalavancagem brutal do balanço dos bancos, de uma forte diminuição do endividamento privado, para que o País reunisse condições de voltar aos mercados, e para que os bancos estivessem aptos a retomarem a concessão de crédito ao sector privado, na actual crise o problema de tesouraria tenderá a dissipar-se com a retoma gradual da actividade das empresas.

Virão outros, certamente, desde logo, o desemprego, a contracção do consumo, a necessidade de reorganizar cadeias logísticas, etc. Mas existe outra diferença fundamental entre estas crises no que toca à liquidez e que é a celeridade da actuação dos governos, disponibilizando linhas de apoio e, principalmente, a rápida actuação do Banco Central Europeu (BCE), garantindo que estaria disponível para comprar toda a dívida pública necessária para financiar as respostas dos Estados-Membros à pandemia. E foi isso que bloqueou a escalada das yields das dívidas públicas, nomeadamente de Portugal.

O BCE, ao contrário de alguns líderes europeus, demonstrou ter aprendido com os erros do passado.

 

Defende uma mudança de paradigma nas medidas de apoio às empresas e ao emprego. Em que bases assenta essa mudança e quais os principais objectivos?
A CIP apresentou já ao Governo e ao presidente da República um conjunto de sete propostas para a retoma da economia portuguesa, das quais destacaria uma que nos parece essencial, que é a conversão de até 90% das garantias de Estado em incentivos a fundo perdido para as empresas que não efectuem despedimentos até 2024, nem reduzam a massa salarial. Trata-se, no fundo, de ter um mecanismo semelhante ao que se aplicou no Portugal 2020, em que se transformou capital em dívida em capital, em função de determinados objectivos, que aqui seriam a garantia de emprego por quatro anos.

Entendemos que as empresas não precisam de mais dívida em cima de dívida. As empresas precisam é de ajuda para manterem a actividade, garantirem o emprego e as estruturas salariais. O que está em causa é que as empresas consigam ultrapassar esta crise, resolvendo problemas de liquidez de forma atempada, e retomem a actividade sem custos acrescidos e insuportáveis

 

Elaboraram um Plano Extraordinário de Suporte à Economia Portuguesa face à pandemia de Covid-19. Por que sentiram necessidade de avançar com um Plano Extraordinário?
Entendemos que as medidas já anunciadas pelo Governo são positivas e poderão resolver temporariamente algumas situações de tesouraria, desde que implementadas com a máxima celeridade e tendo em conta a estrutura empresarial e social existente.

No entanto, face à brutal dimensão do problema – uma economia praticamente parada durante longas semanas, com a cadeia logística e de transportes muito afectada e uma economia ainda a recuperar – com as medidas anunciadas são insuficientes para conter a crise que se avizinha e não são sustentáveis tendo em conta as especificidades do tecido empresarial português. E, portanto, decidimos avançar com sete propostas que, acreditamos, são aquelas que melhor servem o tecido empresarial português.

 

Relativamente a medidas especificas destinadas à manutenção do emprego, quais destacaria?
Todas as medidas de apoio às empresas são medidas de apoio ao emprego. Se depois da pandemia, não houver economia, as empresas não tiverem trabalho, o desemprego será inevitável. O desemprego não se trava por decreto. Temos que acudir à economia, temos de ajudar as empresas a preservar o emprego e a salvarem-se, porque hoje os trabalhadores que estão em casa têm que ter a garantia que no regresso ao trabalho têm o seu posto de trabalho assegurado. Isto passa por dar condições às empresas para manterem a sua actividade.

 

O primeiro-ministro defende que esta não é altura para despedimentos. Deverá ser a manutenção do emprego uma das principais prioridades das empresas?
Preservar o emprego deve ser uma das principais prioridades das empresas, da mesma forma que os trabalhadores e os seus representantes têm de estar focados em salvar empresas. Tenho dito, por diversas vezes, que este é um jogo de selecção e, portanto, todos temos de fazer parte da solução.

 

Que medidas prioritárias, quer para proteger as pessoas, quer para proteger o negócio, foram de imediato implementadas pelas empresas?
Como sabemos a prioridade das empresas foi, desde logo, a protecção dos seus trabalhadores, tomando todas as medidas necessárias para implementar o trabalho à distância ou acautelando a protecção e o distanciamento nas unidades produtivas. Para muitas empresas a suspensão da actividade ou o recurso ao lay-off foram inevitáveis do ponto de vista da protecção do negócio.

 

Que mudanças significativas podem surgir perante as novas formas de trabalho implementadas, como o caso do teletrabalho?
Já antes desta crise o país caminhava para a digitalização, para a transição para a sociedade digital, o futuro do trabalho com todas as suas implicações, as novas formas de trabalho, as novas profissões, as profissões que vão desaparecer, e isso vai implicar um grande esforço de requalificação profissional, de forma a preparar a nossa mão de obra para esta nova economia, para as necessidades emergentes no mercado de trabalho.

A reformulação da economia portuguesa terá que se fazer forçosamente, com o esforço e o contributo de todos, empresários, trabalhadores, Governo, representantes sindicais e patronais. Este é, aliás, o terceiro passo de uma estratégia de regresso à normalidade, à normalidade possível, que apresentámos esta semana ao Governo. É necessário recomeçar, preparando-nos para a economia do século XXI e para os grandes desafios que iremos enfrentar.

 

Se os números do desemprego efectivamente dispararem, o que será fundamental fazer?
Como estava a dizer, será forçoso reformatar a nossa economia. E isso será tanto mais urgente quanto maior for a destruição de empresas e de empregos. Portugal terá de reinventar a sua economia, a sua base produtiva, adaptando-a aos desafios do século XXI, às grandes exigências que teremos pela frente. O surgimento de novas actividades económicas, de novos modelos de trabalho, de novas profissões, e teremos de estar preparados, qualificando e requalificando os nossos profissionais, dotando-os de novas competências, para responder às novas exigências do mercado.

 

Foi um dos subscritores da carta recentemente dirigida presidente da República, ao primeiro-ministro e ao presidente da Assembleia da República. Com a implementação das 10 medidas propostas, quando acha que podíamos voltar à normalidade?
Estamos neste momento a trabalhar, juntamente com o Governo e com os restantes parceiros sociais, numa estratégia de acção para um regresso gradual à normalidade, acautelando, sempre, o bem da saúde pública. E para isso a retoma deve ser inteligente, fatiada, assimétrica, quer em termos regionais, quer em termos de população. O que não podemos é salvarmo-nos desta pandemia para depois descobrirmos que morremos por falta da economia.

E é este correcto equilíbrio que tem de ser encontrado e para o qual estamos a trabalhar. É já público que o cenário base desta estratégia prevê uma retoma gradual de algumas actividades já a partir de Maio e, para isso, é necessário estruturarmos, de uma forma metódica, interagindo com todas as realidades – transportes, turnos, tipologias de empresas, regiões – este plano de acção.

Somos compostos de uma tipologia empresarial diversa e por isso há sectores que vão gradualmente retomando, como o comércio de proximidade, um conjunto de pequeno comércio, entre outros, porque não nos esqueçamos que a nossa realidade empresarial é composta de micro e pequenas empresas que, sendo pequenas, dão emprego a muita gente, e é isso que temos de acautelar.

 

Acha que a União Europeia tem estado à altura das circunstâncias extraordinárias que estamos a atravessar?
A União Europeia tem mostrado, uma vez mais, as suas fragilidades, que assentam, desde logo, na falta de solidariedade entre os Estados-Membros. A imposição de poucos ameaça a vontade da maioria. As conclusões e as medidas avançadas até ao momento continuam a ficar aquém da dimensão do problema que afecta as pessoas e as empresas, e mostram que não aprendemos com os erros do passado.

Precisávamos de uma demonstração de confiança, união e solidariedade, que seria também fundamental para reforçar o papel e a credibilidade da União Europeia face aos cidadãos europeus. Precisamos de acções concretas para relançar o investimento e assegurar o emprego e a sobrevivência das empresas. Em vez disso, verificamos que certos países mantêm uma visão limitada e individualista que trarão consequências desastrosas para o crescimento, criação de emprego e para o futuro da União Europeia.

Este é o momento de os líderes europeus demonstrarem capacidade de acção resoluta e coordenada, num espírito de solidariedade. Mas, em vez disso, continuam a menorizar a dimensão do desastre económico, sem vislumbre de verdadeira União.

 

Na sua opinião, o que devia a União Europeia fazer que ainda não fez? 
Precisamos de usar todos os instrumentos ao nosso dispor, bem como os recursos financeiros disponíveis, para atacar de forma contra-cíclica esta crise. Enquanto não existirem instrumentos verdadeiramente europeus, designadamente a mutualização da dívida decorrente das políticas económicas de combate aos efeitos da pandemia – os chamados “Coronabonds” – estaremos sempre na eminência de um choque simétrico produzir efeitos assimétricos e, por isso mesmo, desproporcionados.

 

Podemos retirar alguns ensinamentos desta situação?
Este é o momento da acção e não da contemplação. Teremos com certeza muito tempo e muitas oportunidades para perceber o que correu mal e poderia ter corrido melhor, o que deveríamos ter feito de forma diferente e não fizemos. O essencial é que, chegado esse tempo, não percebamos que pecámos por falta e não por excesso de zelo. Que fomos pouco audazes nas nossas decisões de tudo fazer para salvar as empresas e o emprego. Que deveríamos ter agido mais cedo e de forma mais musculada e que, nessa altura, estejamos já a pagar um preço demasiado elevado devido à coragem política que não tivemos.

 

Enquanto líder, o que considera que é mais importante na gestão de uma crise desta natureza?
Conseguir alcançar o equilíbrio necessário entre salvar vidas e salvar a economia. Não podemos morrer da cura. Não nos podemos salvar da pandemia para descobrir depois que morremos por falta da economia. E para isso é necessário que os nossos líderes mantenham o diálogo, saibam ouvir todas as partes envolvidas, da saúde, da economia, da política, todos os especialistas que possam aportar valor ao processo de tomada de decisão, para que, com informação, com serenidade, mas também coragem, saibam tomar as decisões que melhor servem os interesses do país, em tempo útil.

 

Que conselho deixaria aos empresários portugueses?
O de sempre: resiliência. O desafio é enorme, vivemos num País que não nos estima nem reconhece, mas só o fruto da nossa coragem, determinação e resiliência poderá verdadeiramente contribuir para salvar Portugal. Os empresários são os heróis esquecidos da evolução económica nacional. A recuperação económica dos anos pós-troika, de que tanto os responsáveis políticos gostam de se gabar, foi fruto do trabalho, do empenho e da determinação dos empresários portugueses.

O aumento das exportações, a diminuição do desemprego, o crescimento económico, deve-se às empresas, mesmo operando num ambiente que lhes é pouco favorável, com enormes custos de contexto e enfrentando, ano após ano, a maior carga fiscal de sempre. Foram as empresas que retiraram Portugal da crise e, estou certo, voltarão a fazê-lo. De uma coisa estou certo: mesmo que nem sempre lhes seja reconhecido o mérito, as empresas continuarão a remar contra a corrente.

A minha mensagem só pode ser de estímulo para que as empresas continuem a demonstrar o seu valor e a sua capacidade de lutar contra a adversidade.

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