Clara Raposo (ISEG): O novo normal é feito de novas pessoas

Clara Raposo, presidente do ISEG – Instituto Superior de Economia e Gestão destaca que «para sobrevivermos enquanto profissionais, temos de mudar tanto que, por vezes, mal nos reconhecemos: como se fôssemos novas pessoas».  Leia o seu testemunho.

 

«Por favor, não leia mal o título. Não, não me refiro às pessoas novas, aos que estão a estudar agora na universidade e se vão juntar ao mundo do trabalho em breve, nem àqueles que são millennials ou próximo disso. Refiro-me mesmo a todos, às diferentes gerações que estão hoje a trabalhar e a estudar.

Também não se assuste! Não, não estou a sugerir que os actuais profissionais se tornaram todos obsoletos e vão ser substituídos por outras pessoas que consigam, essas sim, acompanhar as exigências do “novo normal”.

Aquilo que estou, de facto, a sugerir é que a crise pandémica – com a implacável alteração de hábitos de contacto físico entre humanos que implicou, aliada à evolução tecnológica dos últimos anos – veio provocar uma necessidade tão profunda de transformação na forma como trabalhamos e na substância daquilo que fazemos que, para sobrevivermos enquanto profissionais, temos de mudar tanto que, por vezes, mal nos reconhecemos: como se fôssemos novas pessoas.

Antes da pandemia, já todos, progressivamente, fomos tendo os primeiros sintomas da mudança. Para exemplificar, posso falar de mim. Na escolaridade obrigatória, não me recordo de ter usado um computador. Nem havia telemóvel. Quando entrei para a universidade e durante a licenciatura usei computador muito pouco (quem se lembra hoje do Lotus 123, antes do excel…), estávamos no início. A internet não se usava. Foi em Londres, no doutoramento, que enviei o primeiro e-mail. E depois, a partir daí, o mundo www aumentou. E passei a usar telemóvel, mas já mais tarde. Uma vida tão banal como a minha ilustra bem o quanto cada um de nós se adaptou a mudanças tecnológicas e as inseriu – eu diria que com naturalidade – na sua vida pessoal e no seu trabalho.

Nos últimos anos tem havido uma enorme cobertura mediática acerca do crescimento do mundo digital e da necessidade de todos nós nos adaptarmos – pessoas e negócios. Antes da pandemia falava-se em indústria 4.0 e em transformação digital. E nós, humanos e empresas (e outras organizações), a sermos afectados. Mais uma série de sintomas da necessidade de mudarmos hábitos, muito em especial no trabalho.

Mais depressa ou mais devagar, quase todos os sectores da economia se foram adaptando à internet e à tal transformação digital. Mas, apesar de tudo, antes da pandemia, não foram assim tantas as organizações e pessoas a adoptar um estilo de vida que eu classificaria de televida, uma vida digital, apenas a 2D. Não. Mantivemos, dentro do possível, o hábito de “ir ao trabalho” com regularidade, de socializar com aqueles de quem gostamos e de fazer “networking físico” com aqueles que nos interessam. Mas tínhamos à nossa disposição as ferramentas tecnológicas cuja utilização a pandemia generalizou.

A pandemia funcionou, portanto, como o catalisador e acelerador da transformação digital dos negócios e das organizações. Esse processo está em curso. Isto significa que trabalhar de forma remota passou a ser um padrão; mesmo quando hoje trabalhamos presencialmente, mantemos as distâncias, usamos máscaras e nada é igual. De certa forma, ganhámos na dimensão digital e perdemos na nossa dimensão física. Se calhar estamos a aproximar-nos de uma forma humana mais próxima da inteligência artificial. Somos novas pessoas.

Mas, até lá, continuamos a ser aquelas pessoas que se lembram ainda de como eram antes. E que, para se manterem envolvidas e genuinamente interessadas naquilo que estão a fazer, precisam de alimentar essa componente humana.

Eu não sei se o estudo que me pediram para aqui comentar está certo ou não. Aquilo que me parece é que, para uma pessoa razoavelmente “techy” como eu, mas com um gosto particular pela leitura, por exemplo, ou pelas artes, se torna extremamente aborrecido passar um dia inteiro em reuniões e afins num ecrã, por mais bonito que ele seja. E concordo que as pessoas mais criativas, as que nos surpreendem, ou que nos fazem pensar, ou as que nos fazem rir, mesmo online, é que são aquelas que nos mantêm ligados uns aos outros numa organização, nos dias que correm.

Concluindo, sim, é impossível hoje trabalharmos sem sermos ágeis e flexíveis, sem dominarmos novas tecnologias. Mas, para liderarmos e/ou para nos sentirmos bem, precisamos daquele extra único, muito humano, de cada um. Aqueles cuja centelha brilha, mesmo em tempos de pandemia, são quem nos guiará no futuro.

Ou não. Sugiro uma leitura, ficção, de um autor muito polémico. “A possibilidade de uma ilha”, de Michel Houellebecq, imagina um futuro em que vamos sendo substituído por versões futuras nossas, cada vez mais “artificiais”. É uma boa leitura para quem tanto trabalha com big data, como eu… Que o futuro não seja assim.»

Para sobrevivermos enquanto profissionais, temos de mudar tanto que, por vezes, mal nos reconhecemos: como se fôssemos novas pessoas.

Este artigo faz parte do tema de capa da edição de Outubro (n.º 118) da Human Resources, nas bancas.

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