Gig Economy. Afinal, os condutores das “ubers” podem ser considerados funcionários da empresa?

Depois do Supremo Tribunal do Reino Unido ter decidido que aos motoristas da plataforma Uber devem ser reconhecidos enquanto trabalhadores da empresa, imediatamente surgiram outras questões. “E em Portugal, como ficamos?”, ou, “deve haver uma revisão laboral para fazer frente a esta questão?”, são apenas algumas das questões que, para além de irem ao encontro da actualidade relacionada com a Uber, acabam por ser uma reflexão que se estende a novas plataformas digitais. Como ficam as relações laborais na famosa “gig economy”?

Por Susana Afonso – sócia coordenadora de Direito do Trabalho & Fundos de Pensões CMS Rui Pena & Arnaut

 

Comecemos pelo caso português. Em Portugal, o TVDE – transporte em veículo descaracterizado a partir de plataforma electrónica -, só pode ocorrer através de um operador que seja uma pessoa colectiva. Entre esse operador, licenciado junto do IMT – Instituto da Mobilidade dos Transportes, I.P., e o motorista, tem que existir um contrato escrito, podendo o mesmo ser de serviços ou de trabalho.

Tipicamente, a frota de veículos automóveis afectos ao TVDE, está integrada em sociedades constituídas para o efeito – operador -, sendo que os motoristas que conduzem as viaturas recebem à comissão, celebrando com aqueles um contrato em regime de prestação de serviços.

Com este modelo implementado e o quadro vigente, é forçado considerar a existência de uma relação de contrato de trabalho directa com a Uber ou plataforma electrónica semelhante, que, na prática, não tem qualquer relação com os motoristas, não os conhece, não define os horários, não controla a assiduidade, nem lhes dá instruções directamente.

No entanto, no plano académico, decorre a discussão se a plataforma electrónica, de alguma forma, dá instruções ou controla o tempo de trabalho do motorista, podendo entender-se que as escolhas dos passageiros que são transportados por cada motorista através da plataforma electrónica é equiparada a uma instrução, ou ser entendido como um controlo de horário de trabalho.

É então urgente avançar com a regularização no nosso país? Embora saiba que acabará por acontecer, entendo que não é essencial. Não entendo que haja uma lacuna, atento o regime geral e a existência do regime jurídico específico da actividade de transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma electrónica (RJTVDE), aprovado pela Lei n.º 45/2018, de 10 de Agosto.

Sem prejuízo, esta questão em Portugal também se pode resolver por decisão judicial. Por outro lado, a fronteira surge-nos mais ténue na qualificação dos contratos entre os motoristas e os operadores (empresas que estabelecem uma relação contratual com as plataformas electrónicas), isto é, se existe, de facto, uma relação de prestação de serviços ou de trabalho.

Isto equivale a afirmar que os trabalhadores estão desprotegidos? Não, o RJTVDE, curiosamente, refere expressamente que sem prejuízo da denominação do contrato que motorista e operador tenham adoptado, serão aplicáveis os termos em que se presume a existência de um contrato de trabalho. Neste sentido, é apenas uma questão de enquadramento factual à lei existente.

Assim, qualquer motorista que reclame judicialmente uma relação enquadrável num contrato de trabalho ao invés da prestação de serviços poderá ver esclarecida a natureza do seu vínculo contratual. Se for considerado trabalhador do operador, ser-lhe-á reconhecido esse enquadramento com efeitos retroactivos. O motorista passará a beneficiar do regime de protecção de segurança social aplicável aos trabalhadores por conta de outrem, ficando adstrito aos direitos e obrigações próprios dessa relação e da actividade, nomeadamente aplicando-se-lhe o regime de organização do tempo de trabalho das pessoas que exercem actividades móveis de transporte rodoviário. Se assim não suceder, será considerado um trabalhador independente, com as protecções legais existentes, inclusivamente em termos de segurança social, que estão legalmente definidas.

Recordamos que no caso de um motoristas prestar 50% ou mais da sua facturação anual a um operador, ainda que não seja considerado entidade empregadora, será considerado entidade contratante para efeitos de segurança social, o que determina o pagamento de uma contribuição anual para a segurança social relativo àquele motorista.

Assinalar que o vínculo laboral com os operadores nem sempre é pretendido pelos motoristas, que pretendem beneficiar da flexibilidade que o regime da prestação de serviços permite, quando comparado com o regime jurídico-laboral, nomeadamente no que respeita à gestão do trabalho e do respetivo tempo, bem como ao exercício de atividades concorrentes.

E, agora, a pergunta de um milhão de euros: todos estes pressupostos abrangem o resto de plataformas idênticas à Uber? Como o enquadramento exposto anteriormente aplica-se à actividade concreta de transporte em veículo descaracterizado a partir de plataforma electrónica, os pressupostos, neste caso, aplicam-se às plataformas electrónicas semelhantes que se dedicam a esse tipo de actividades. Por outro lado, outras plataformas electrónicas famosas, nomeadamente as que se destinam aos serviços de entrega ao domicílio de bens, poderão ter outros enquadramentos específicos, consoante a respetiva actividade.

Independentemente do exposto, o Código do Trabalho prevê a presunção da existência de um contrato de trabalho, mediante a verificação de determinadas características.

 

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