«Há falta de pessoas, mas há sobretudo falta das pessoas certas», dizem os especialistas

Tentar perceber o que as pessoas querem e o que podem as empresas dar-lhes foi o mote para o Crossfire da 23.ª edição da Conferência Human Resources. A esta questão juntou-se outra: será que existe ainda a tão falada falta de pessoas, ou será que as pessoas já não querem o que as empresas oferecem? Responderam Ana Porfírio, directora de Recursos Humanos da Jaba Recordati; Ana Rita Lopes, directora de Recursos Humanos do Grupo Nabeiro/Delta Cafés; Isabel Borgas, directora de Pessoas e Organização da NOS; Margarida Cardoso, directora de People & Culture da Tabaqueira; e Nuno Fernando Carvalho, partner da Deloitte. A moderação do debate esteve a cargo de Ana Leonor Martins, directora de Redacção da Human Resources, e Pedro Ribeiro, director de Pessoas do Super Bock Group.

 

Pegando no tema da conferência, a primeira questão do debate foi tentar perceber, afinal, o que querem hoje as pessoas. Será que o salário continua a pesar mais para os profissionais, ou os modelos de trabalho flexíveis ganham agora uma maior importância. Com alguns estudos realizados sobre o tema, a Deloitte tem analisado estas questões.

 

Nuno Fernando Carvalho, partner da consultora, começa por relembrar que, durante a pandemia de COVID-19, «tivemos situações de grande reflexão por parte dos colaboradores, devido à incerteza que se viveu e à falta de perspectivas na evolução que poderia acontecer nas organizações, daí surgirem temas como a saúde mental, além das questões do ponto de vista financeiro». Hoje, as pessoas procuram felicidade, refere, «mas isso, no meu entender e de acordo com estudos que temos feito, traduz-se em bem-estar, sentido de pertença, desafio e capacitação». «As pessoas procuram encontrar o equilíbrio nas suas vidas, estando subjacente uma certa flexibilidade, ou seja, um modelo de trabalho mais flexível. E também querem ver, por parte das organizações, condições para poderem, de forma efectiva, sentirem-se mais produtivas», refere. «É cada vez mais importante para as pessoas perceberem qual é o propósito da organização, entender como podem contribuir para esse desenvolvimento. No fundo, assistimos a um efeito de dar e receber.»

 

Mantendo-se o salário e os benefícios como os principais factores, a verdade é que, como foi referido, a cultura, o propósito e o ambiente de trabalho são também factores a ter em conta. Questionada sobre o papel destas diferentes dimensões naquilo que os profissionais procuram numa organização, Ana Porfírio começa por referir que as pessoas procuram um pouco de tudo. «Todos nós mudámos, assim como as empresas mudaram. Todos estamos em processo de transformação, mas não me parece que esse processo esteja terminado, pelo contrário. Na minha opinião, está apenas a começar.»

Para Ana Porfírio, as pessoas não sabem o que procuram neste processo de transformação. «Digo isto porque os surveys que temos feitos bimensalmente demonstram que os resultados obtidos, relativamente ao que as pessoas querem, mudam substancialmente com o passar do tempo, muito influenciados pelas alterações sentidas tanto no ambiente organizacional como no ambiente externo.» Perante isto, a cultura da organização continua a ser a mesma, assim como o seu ADN. «O que as empresas precisam de fazer agora é um upgrade, atendendo à enorme transformação que vivemos e continuamos a viver. Isto implica que, do ponto de vista da atracção dos candidatos e da própria retenção, as empresas tenham de apostar mais na forma como vão chegar-lhes e naquilo que têm para lhes oferecer.» É precisamente isso que acontece na Jaba, «com o reskilling das nossas pessoas, dado que, em termos de negócio, mudámos muito e tivemos de fazer alterações profundas na estrutura da empresa, o que teve influência directa no reskilling das nossas pessoas e no upsklling da nossa liderança.»

 

Isabel Borgas tem uma opinião diferente, acreditando que as pessoas sabem o que querem. «A pandemia e a guerra fizeram de facto com que parássemos para pensar no que queremos para a nossa vida nas suas diferentes dimensões (pessoal, familiar e profissional), e dessa reflexão resultou relativamente claro que queremos mais equilíbrio e, com isso, mais flexibilidade.» A responsável da NOS não nega que «podemos andar um pouco perdidos sobre como conseguimos este equilíbrio, mas há clareza sobre onde queremos chegar.»

 

Esta afirmação levou Ana Porfírio a concordar, mas a discordar na maneira como isso se materializa. «Já vi resultados de surveys onde as pessoas apontam aspectos, nomeadamente nos benefícios, tendencialmente elevados numa determinada dimensão, e seis meses depois esse benefício já não interessa.» Em resposta, Isabel Borgas refere que «conforme vão sendo dados benefícios, é natural que as pessoas os comecem a dar como adquiridos. Isto leva a que, a partir de uma determinada altura, esta se torne numa equação difícil de ser equilibrada para os dois lados. O caminho é difícil, e é natural que não exista clareza individual, ou mesmo corporativa, de como o vamos fazer; neste ponto, parece-me que estamos todos a aprender uns com os outros. Mas acredito mesmo que as pessoas sabem o que querem, querem mais flexibilidade e mais equilíbrio nas suas opções de vida. Esta é a sua nova ambição — até quando, vamos ver.»

 

Mas será que é mesmo flexibilidade aquilo que as pessoas mais querem, pergunta Ana Leonor Martins a Margarida Cardoso. «Sim, creio que querem flexibilidade, embora não seja ainda muito claro, nem para as empresas, nem para os profissionais, o que essa flexibilidade significa. Na Tabaqueira têm sido discutidos os modelos de trabalho, mas para nós esta é só uma forma de flexibilidade, não responde a todas as necessidades.» Na visão de Margarida Cardoso, este período foi um período de muita reflexão. «As pessoas equacionaram quase até o sentido da sua existência, o que, efectivamente, tem um impacto muito grande no modo como pensam e avaliam as diferentes dimensões da sua vida, entre elas a dimensão profissional.» Se é verdade que houve uma forma de trabalhar que algumas empresas viram como contingente, os colaboradores perceberam que essas novas formas de trabalhar realmente funcionam «e não se mostram disponíveis para voltar a antigos modelos, o que, na minha opinião, faz sentido».

 

Mas até onde devem as empresas ir neste âmbito? Será que devem ir ao encontro de tudo o que os colaboradores pedem, correndo o risco de descaracterizarem a sua cultura?

«Acima de tudo, importa existir equilíbrio», responde Ana Rita Lopes. «Dar tudo aos colaboradores, claro que não! É preciso definir as regras de forma clara, pelo que a gestão tem de conseguir ajustar tudo isto à equipa que tem. Nunca dar tudo, nem às crianças se deve dar tudo, pois assim não as educamos.»

Nos últimos dois anos, experimentámos maneiras diferentes de trabalhar e de interagir, e parece-me que isso clarificou o que queremos e o que não queremos na nossa vida». O não cair em extremismos é a expressão certa, refere, e manter o equilíbrio em todos os aspectos, «até porque não temos pessoas iguais, temos pessoas em fases de vida completamente diferentes, levando a que umas prefiram flexibilidade e outras não». Ana Rita Lopes defende que, se as regras estiverem claras, não há o risco de descaracterização da empresa «e tudo se apresenta mais fácil».

 

Qual o impacto da clivagem entre aquilo que as pessoas querem e o que as empresas podem dar? 

Nuno Fernando Carvalho é da opinião que existe uma convergência e não uma clivagem. «A tendência vai no sentido de as pessoas serem mais ouvidas, e se incorporarem na organização medidas que vão ao encontro dessas preocupações.» O papel da liderança é aqui crucial, acrescenta: «Se calhar temos, neste novo normal, tendência para tentar apelar a que as pessoas regressem, mas é preciso dar um sentido a esse regresso, é preciso explicar porque queremos que as pessoas regressem, que não seja por uma questão de controlo (o que se apresenta como algo negativo), tendo de passar a existir uma lógica de responsabilização, orientação e resultados para que essa flexibilidade seja possível.»

Hoje há, realmente, uma mudança no mindset, mas as mudanças vão sendo ajustadas ao longo do tempo. «Provavelmente, vamos ter de aprender, visto que não existem medidas certas, e é tudo feito por observação, com a liderança a ajustar as suas decisões.» Se o impacto destes diferentes aspectos na atracção e de retenção for grande, «os líderes vão perceber que terão de ser mais disruptivos nas medidas que têm de tomar».

Perante esta nova realidade, Ana Porfírio foi questionada por Pedro Ribeiros se as empresas devem impor as novas regras ou se devem permitir que seja o colaborador a defini-las. A resposta veio pronta: «As empresas têm de ter um caminho definido, mesmo que esse caminho não esteja totalmente fechado e tenha de ser reajustado. As organizações vão ter de se adaptar às pessoas e as pessoas vão ter, também elas, de se adaptar às organizações.» Tudo mudou e, na opinião da responsável da Jaba, «não vamos voltar a 2019». Defendendo que tem de existir um efectivo equilíbrio, afirma que «o foco tem de estar assente, sempre, no negócio e nos resultados do negócio, garantindo que damos às nossas pessoas aquilo de que elas precisam para entregar o seu melhor». Para Ana Porfírio, é nesta dicotomia que reside um enorme desafio.

 

Mas não se estará a dar demasiada importância à forma como as pessoas trabalham?

Margarida Cardoso é da opinião que «perdemos pouco tempo a pensar como as pessoas trabalham. Passamos, isso sim, muito tempo a pensar e a decidir onde é que elas têm de trabalhar e a que horas.» As pessoas pedem às empresas flexibilidade, e as empresas dão-lhes dois ou três dias em casa, afirma, mas «a questão da flexibilidade não é necessariamente isso». Na visão desta responsável, as empresas têm de pensar muito mais no que querem em termos do produto do trabalho e na forma como interagem com as suas pessoas. «Uma das grandes dificuldades que sentimos na Tabaqueira é o facto de termos um modelo de trabalho híbrido, mas se continuarmos a trabalhar da mesma forma (com intermináveis reuniões no Teams, por exemplo), as pessoas vão deixar de o ver como um benefício. Perante isto, temos de pensar não só no número de dias e nos locais onde se trabalha, mas no que queremos, de facto, que aconteça em termos, também, de experiência e da maneira como as pessoas vão interagir e trabalhar no futuro.» Esta, sim, é a grande mudança, defende, «não onde elas estão».

Questionada se esta questão deriva muito do facto de o poder estar mais do lado dos colaboradores devido à escassez de talento, se isso também tem impacto a outros níveis na organização, nomeadamente a nível do salário, e se é só em determinados perfis ou se já se sente a nível generalizado, Isabel Borgas acredita que os modelos de trabalho actuais são consequência da pandemia. «Se há coisa que a pandemia mostrou é que, para a grande maioria de funções, não houve quebra de produtividade. Com um mercado de trabalho mais global, as janelas de oportunidade que surgiram são muito maiores do que as do passado. Por consequência, se a partir de determinada altura não tenho como barreira a novos desafios profissionais a geografia em que trabalho, os salários também ficam sob uma pressão maior.»

Se tem mais impacto nas novas contratações ou nos colaboradores antigos, a directora de Pessoas e Organização da NOS acredita que tem em ambos. «É evidentemente uma questão pressionada pelas novas contratações, mas tem de se pensar nos colaboradores que estão nas organizações desde o princípio. Essa pressão vem de ambos os lados.» A responsável destaca que «é possível na equação entre o salário e o salário emocional conseguir trabalhar mais efectivamente os actuais colaboradores nas duas dimensões do que um colaborador que é novo. As organizações e os gestores de pessoas têm de ser criativos para encontrarem modo de manterem a competitividade do mercado, na equação de emocional e não emocional.»

Respondendo à pergunta se, na Deloitte, esta globalização é vista como oportunidade ou como ameaça à retenção de talento, Nuno Fernando Carvalho defende que a globalização traz novos desafios. Do ponto de vista do trabalhador, é uma oportunidade, porque tem obviamente  acesso a outro género de oportunidades com impacto do ponto de vista salarial, mas também a outras culturas, a outros desafios. Contudo, na perspectiva das empresas, «é claramente uma ameaça. Esta globalização poderá ser uma das principais preocupações no dia-a-dia. É urgente estabelecer estratégias que protejam o nosso activo, as pessoas.»

Sobre o mesmo tema, Ana Porfírio explica que a Jaba Recordati tem força comercial em Portugal, por isso não sente o impacto da globalização. Mas destaca que nas funções mais técnicas, nas funções científicas, «sente-se o desafio, quer do ponto de vista de atrair, quer do ponto de vista de manter os colaboradores, devido à competitividade dos pacotes salariais oferecidos em Portugal face a outros países europeus.»

Questionada se é mesmo o salário que torna Portugal menos competitivo, ou se o desafio também conta, Ana Rita Lopes defende que compete aos empregadores tornarem-se competitivos no desafio que dão aos colaboradores, dado que «nem só uma coisa, nem só outra nos preenche enquanto profissionais». A responsável defende que os gestores devem criar dinâmicas nas equipas que promovam o desafio e a ligação com a organização. O desafio dos gestores é saber o que as pessoas procuram.

Já Isabel Borgas acredita haver áreas, nomeadamente as tecnológicas, onde é mais difícil atrair, mas sobretudo reter. «A NOS é uma escola em muitas dimensões, com a capacidade de exportar talento, o que cria um enorme desafio para a empresa.»

Sobre se a “Great Resignation” pode ser uma realidade em Portugal e como as empresas podem evitar isto, Margarida Cardoso faz notar que em Portugal se vive uma realidade muito diferente da dos Estados Unidos da América, por isso não prevê que vá acontecer em Portugal um fenómeno com essa dimensão. Embora alerte que «há pessoas que mostram muito mais disposição para mudar de vida, não é isso que cria mais pressão nas empresas». Para a responsável, a competitividade e a escassez criam mais pressão, mas tem de haver um grande trabalho das empresas para se focarem naquilo que são as suas estratégias para o desenvolvimento das suas pessoas e para garantir um compromisso de longo prazo.

 

Para concluir o crossfire, os oradores foram questionados se há falta de pessoas e de pessoas certas, e qual o grande desafio para as empresas. Segundo o partner da Deloitte, há falta de pessoas certas, o que pode gerar a necessidade de criar programas de requalificação nas organizações. «É importante perceber se as pessoas na organização acompanham as mudanças, se estão preparadas para tal, e olhar para aquilo que é o novo ecossistema.»

Ana Rita Lopes defende haver falta de pessoas certas e com determinadas competências. «Fruto dos últimos anos, há escassez de mão-de-obra em certas áreas. É preciso começar a formar as pessoas mais cedo e fazer reskilling.»

O mesmo alega Ana Porfírio — há falta de pessoas e de pessoas certas. «Há necessidade de continuar a adaptar constantemente quer o negócio, quer as nossas pessoas às realidades com que nos deparamos para sermos atractivos.»

A directora de Recursos Humanos da NOS acredita haver falta de talento certo, nomeadamente gestores de pessoas mais corajosos, que aceitem que as pessoas mudaram e que isto também implica habilitá-las mais. «Não temos ainda as pessoas certas porque não fizemos o tal caminho completo para perceber onde nos queremos posicionar, e ter a coragem de arriscar e fazer coisas diferentes.»

Margarida Cardoso salienta que há mais falta de pessoas certas do que de pessoas em geral, explica haver necessidade de um conjunto de competências que não foram criadas, interna ou externamente, na dimensão e na proporção necessárias no mercado de trabalho. E alerta que «é preciso olhar para o ecossistema e perceber de que competências precisamos, em que área, e quando podem ser fornecidas por pessoas diferentes».

 

Texto: Margarida Lopes e Sandra M. Pinto | Foto Nuno Carrancho

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