Hino à antifragilidade

Mais do que resilientes, os líderes têm de ser antifrágeis. E, para o alcançar, precisam de abandonar com frequência a zona de conforto. Este texto é um hino à desconstrução da forma como encaramos, absorvemos e aproveitamos as disrupções, tendo em vista a evolução e transformação positivas.

 

Por Ricardo Caldeira, autor do livro “Liderança Emocional”

 

Uma das características mais imprescindíveis à liderança, uma das competências que comummente se identifica como mais necessária a um bom líder, é a resiliência.

Resiliência é, na definição da Wikipédia, «a capacidade de um indivíduo lidar com problemas, adaptar-se a mudanças, superar obstáculos ou resistir à pressão de situações adversas – choque, stress ou outros eventos traumáticos». É também, recorrendo aos conhecimentos oriundos do mundo da Física, «a propriedade de que são dotados alguns sub-materiais, de acumular energia, quando exigidos ou submetidos a stress, sem ocorrer ruptura», ou ainda, «a propriedade dos corpos que voltam à sua forma original, depois de terem sofrido deformação ou choque».

Vivendo nós num mundo cada vez mais imprevisível, com cada vez mais eventos súbitos, inesperados, e de impacto significativo – o tão falado mundo VUCA (do acrónimo inglês Volatility, Uncertainty, Complexity e Ambiguity) –, facilmente se identifica a natureza indispensável desta característica na liderança; os líderes necessitam de estar munidos desta competência, a resiliência, para enfrentar desafios imprevistos, tomar decisões difíceis, lidar com problemas cada vez mais complexos – eventualmente vergando, mas sem nunca fraquejar.

Já a antifragilidade é, em boa verdade, um termo que não tem sequer uma definição específica. De imediato, poderíamos ser levados a considerar que será o antónimo de fragilidade e, como tal, um sinónimo de resiliência. Contudo, não é bem assim.

No seu livro “Antifrágil”, Taleb concretiza que algumas coisas beneficiam com choques. Mais, elas até prosperam e conseguem desenvolver-se quando expostas à volatilidade, à desordem, ao erro ou ao stress e, imagine-se, prezam o risco e a incerteza. Assim, diferencia resiliência de antifragilidade. Na sua ordem de ideias, o que é resiliente resiste a choques, mas permanece o mesmo, sem alterações (a tal capacidade de voltar à forma original), enquanto o que é antifrágil melhora, cresce e evolui com esses choques. Antifragilidade é como que um estado evolutivo, um estado superlativo da resiliência – é a sua versão aditivada, se quisermos, é uma adaptação positiva face a adversidades.

A grande diferença reside, então, na imutabilidade – ou da falta dela – do que/ de quem sofre o choque. Ainda no citado livro de Taleb, dou particular nota de destaque à analogia que nos é apresentada para descrição do que significa isto da antifragilidade – a história dos gémeos John e George. John trabalha num grande banco há 25 anos. Tem uma vida estável, ordenado e regalias sociais previsíveis; tudo relativamente rotineiro, cómodo e seguro. George, por outro lado, é motorista de táxi, por conta própria, também há 25 anos. Há dias em que conduz até muito tarde e transporta dezenas de clientes, e outros em que o movimento é quase nulo, praticamente insuficiente para pagar as despesas. O seu quotidiano, e consequentemente o seu rendimento, as suas “regalias”, são extremamente variáveis, incertas e inconstantes.

Os riscos que George corre são visíveis e reais – e não ocultos, como os de John, cobertos pelo “manto” da tal previsibilidade. É verdade, e em abstrato, que rapidamente associamos maior conforto, segurança ou estabilidade à situação e enquadramento de John. Mas será John quem está melhor preparado para enfrentar um evento inesperado, impactante e perturbador – um choque? Muito provavelmente não.

George, que está mais habituado a conviver com a variabilidade, volatilidade e imprevisibilidade, ajustar-se-á seguramente de forma mais veloz em resposta a um evento dessa natureza. A aleatoriedade natural, em situações como a de George, minimiza o impacto desses “choques” (o impacto dos choques é muito menor porque existe uma variabilidade diária bastante maior). Podemos, portanto, aferir que conforto e estabilidade são ambos bastante frágeis e vulneráveis a “choques” – a histórica e conhecida, porém enganadora, segurança.

A crença de que a aleatoriedade é arriscada e algo prejudicial, uma das grandes ilusões da vida, é com esta pequena história fortemente colocada em questão.

 

“Doing what you like is freedom; liking what you do is happiness”
Segurança e felicidade no trabalho, nunca tendo deixado de ser de extrema importância, têm hoje leituras e são vistas e sentidas de maneiras diferentes. E são os dois pilares onde mais devíamos “fazer acontecer” a antifragilidade.

No tempo dos nossos pais reinava o paradigma do “emprego para a vida” – como na história de John. O que interessava, nessa altura, era a segurança de ter um trabalho, ainda que mal remunerado, ainda que sem trazer realização ou satisfação pessoais. A felicidade, se assim a pudermos apelidar, advinha dessa circunstância.

Mas 30 ou 40 anos depois, algumas gerações mais tarde, a segurança que talvez mais importa é a psicológica, a emocional. Ninguém quer estar uma vida inteira num local onde não se sente bem ou valorizado. O que a força de trabalho actual procura é a felicidade, a realização pessoal, a oportunidade de fazer o que gosta, onde gosta, com quem gosta, da forma que gosta.

Antigamente, era impensável trocar de emprego, “hipotecar” a segurança existente em busca de maior felicidade; actualmente, o impensável é precisamente o contrário, é não ir em busca de maior felicidade, ainda que isso signifique trocar de emprego e aumentar a imprevisibilidade.

Em boa medida, esta mudança de paradigma comporta em si mesma também alguma antifragilidade. Não resistir apenas; lutar e melhorar!

Antifragilidade, então, não é lutar contra o stress, o imprevisto ou o incerto, é prosperar apesar deles; é dar-lhe as mãos e fazer deles uma espécie de aliados na longa jornada de crescimento interno, de busca para nos tornarmos melhores e mais fortes pessoas – pessoal e profissionalmente. O erro expõe-nos, torna-nos vulneráveis, retira-nos confiança, e é precisamente por isso que deve estar na base da construção da resiliência e, por consequência, da antifragilidade.

Assim sendo, diariamente temos a oportunidade de evoluir e de nos superarmos, porque diariamente estamos expostos a choques. Podemos não ser apenas resilientes, resistindo a algo externo, com impacto, mas ser antes antifrágeis, ou seja, aproveitar e conseguir evoluir, conseguir melhorar à conta desses mesmos impactos.

Recordo, e ouso adaptar, a este respeito, a teoria da “destruição criativa” de Schumpeter, uma teoria económica que defendia ser necessária a destruição de algumas coisas (empresas, sectores, etc.) para que os sistemas pudessem melhorar. Suprimir factores de tensão e aleatoriedade é então algo que fragiliza os sistemas – económicos, sociais, de qualquer natureza. É muito mais difícil haver estabilidade sem volatilidade, é uma das grandes conclusões de Taleb no seu livro.

 

Gerir longe do equilíbrio
E no que diz respeito à liderança? Quem está melhor preparado? Será que o líder clássico, que gosta de controlar tudo e todos (microgestão), que se sente confortável na rotina, no estático, no status quo, vai reagir melhor a um “black swan event” do que um líder moderno, que pensa e faz “fora da caixa”, que é dinâmico, inovador, disruptivo e que tem enorme capacidade de adaptação? Risco, erro e volatilidade são então, ou não, exigidos e necessários no contexto da liderança?

Se é suposto a liderança ser um fenómeno evolutivo, parece evidente pelo exposto que, mais do que resilientes, os líderes têm de ser antifrágeis. Sendo-o vão conseguir, com o tempo, e nas posteriores etapas dessa evolução, ter outra capacidade de resposta e reacção aos choques. Vão deixar de apenas lhes responder, para deles conseguir retirar a energia necessária para se tornarem ainda mais capazes de os enfrentar – uma espécie de superpoder que, neste caso, curiosamente, tem a sua origem no próprio “vilão”.

O que não nos matar, que nos torne mais fortes: à boleia de Nietzsche, poder-se-ia estabelecer este como um lema da antifragilidade.

Tenhamos, no entanto, presente que a antifragilidade de alguns surge, necessariamente, à custa da fragilidade de outros – isto é, na maioria das vezes, os sacrifícios de alguns são necessários para o bem-estar de todos.

Também o livro “Liderança – as lições de Mourinho” fala, a certa altura, de uma ideia de Mourinho que recupero para esta discussão – no fundo, um outro prisma de enquadramento da antifragilidade. Na sua visão, é não só salutar, como essencial, a necessidade, de quando em vez, de desestabilizar as equipas. “O desequilíbrio é bom para as organizações! Situações de desequilíbrio desafiam as equipas, forçam-nas a melhorar, a organizarem-se, a dedicar-se e a ter melhor desempenho. Desequilibre, desafie os seus profissionais e a si próprio!”

As equipas devem ser geridas constantemente num estado de desequilíbrio, ou “longe-do-equilíbrio”. Esse equilíbrio será, nesse caso, um fim, uma meta, e só se atingirá com as vitórias. Os desequilíbrios, que neste caso são provocados, serão então os choques que conduzirão à antifragilidade.

Na zona conforto, tudo o que acontece é previsível e rotineiro. Para que sejamos desafiados, mas também para que consigamos atingir esta antifragilidade, é premente que a abandonemos com frequência.

Este texto não pretende ser uma ode ao erro, à falha, ao stress ou a qualquer outro tipo de choques; visa, isso sim, ser um hino à desconstrução da forma como encaramos, absorvemos e aproveitamos as bondades de todas essas disrupções, tendo em vista crescimento, valorização, evolução e transformação positivas. Mais do que resilientes, os novos líderes precisam de ser antifrágeis!

 

Este artigo foi publicado na edição de Setembro (nº.129) da Human Resources, nas bancas.

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