Neutralizando (maus) neutralizadores da liderança

Somos tão propensos a romancear a liderança que raramente nos damos conta de que a actividade dos líderes pode ser neutralizada por vários factores respeitantes aos liderados, à natureza das tarefas, ou à própria organização. É por essa razão que importa neutralizar os neutralizadores da liderança. Aqui focamo-nos na gestão estatal.

 

Por Arménio Rego, professor catedrático e director do LEAD Lab, Católica Porto Business School e Miguel Pina e Cunha, professor catedrático na NOVA School of Business and Economics.

 

Foi esse o tema de artigo que anteriormente publicamos nesta revista (edição de Dezembro de 2020) e que agora retomamos para aprofundar a discussão. Seguidamente, sugerimos um rol adicional de modos de neutralizar neutralizadores. Focamos, sobretudo, neutralizadores pertinentes para a gestão do Estado – contexto no qual a espessura da burocracia, a dificuldade de aplicar incentivos personalizados, ou a pouca sensibilidade do processo de gestão de desempenho podem dificultar uma boa gestão de recursos e de pessoas.

Naturalmente, estes problemas não são apanágio exclusivo das organizações estatais – antes podem ser observados em todos os tipos de organizações. Os neutralizadores de neutralizadores que seguidamente discutimos podem, pois, ser aplicados em todos os tipos de organizações. Antes dessa discussão, uma nota é, contudo, necessária: nem todos os neutralizados da liderança são perversos. Perverso pode ser não neutralizar más lideranças. Desenvolvemos o tema na parte final.

 

Articular importantes porquês
As pessoas são motivadas por numerosos factores. E um dos mais importantes é a possibilidade de realizarem trabalho com significado – trabalho em prol de uma missão com impacto positivo no exterior. Esse factor é (ou pode ser) especialmente mobilizador para os trabalhadores do Estado, dada a natureza das próprias organizações estatais e da sua finalidade.

Uma forma de avivar esse sentimento consiste em ajudar a equipa a perguntar regularmente: (a) Porque fazemos o que fazemos? (b) Com que finalidade? (c) Como podemos ajudar os cidadãos a exercerem melhor os seus direitos e deveres de cidadania? A resposta a estas perguntas pode estimular a motivação intrínseca e impedir que os serviços se centrem em si próprios e descurem as pessoas e as entidades que devem servir.

O exercício pode ser uma forma de neutralizar obstáculos a uma boa liderança – mas pode igualmente ser fundamental para evitar lideranças autocentradas ou criadoras de processos burocráticos desprovidos de orientação para o serviço.

 

Criação de equipas transversais
Muitos sectores do Estado, e das organizações em geral, operam numa lógica de silos. Cada silo não comunica com os restantes silos, deixando o cidadão à mercê de um emaranhado processual que lhe requer deslocações labirínticas. É conveniente, pois, promover a comunicação entre diferentes sectores, serviços, áreas de conhecimento, departamentos e ministérios.

A criação regular de equipas transversais pode ser um poderoso auxiliar. Permite que cada unidade compreenda os desafios experienciados por outras unidades, adquira consciência de como pode facilitar a gestão dessas dificuldades, e comunique às outras unidades como elas podem servir a “nossa” unidade.

Ademais, a transversalidade pode gerar diversidade de perspectivas para resolver problemas de modo criativo e inovador. “Cada macaco no seu galho” pode ser uma boa forma de manter a selva burocrática e os procedimentos desnecessários – mas não facilita a edificação de uma lógica servidora.

 

Deslocações ao terreno
Muitos líderes gerem a partir da torre de marfim. Esta torre pode ser o gabinete, o escritório lá de casa em tempo de pandemia, a postura “não te rales” ou, pura e simplesmente, o castelo da soberba. A torre pode ser a fortaleza que permite olhar para a realidade mais conveniente – como se a inconveniente não existisse.

Quando um responsável governamental faz uma incursão no terreno através de uma visita planeada, acompanhada pelos media, é muito provável que aceda apenas a uma parcela da realidade. Se quer conhecer a realidade real, conviria que a visitasse em condições naturais. Este é um empreendimento que todos os líderes devem levar a cabo – qualquer que seja o nível ou o sector. Permite conhecer as dificuldades e particularidades da vida daqueles que a organização serve. Ajudando a melhorar o conhecimento da realidade, credibiliza o processo de tomada de decisão e pode exercer poder motivador.

 

Criação de salas de reflexão
Juntar pessoas provindas de diferentes áreas de conhecimento em salas de reflexão pode ser outro modo de aumentar o impacto da liderança. Além de aumentar a criatividade e a inovação, quebra rotinas e facilita a reflexão. Ajuda a antecipar mudanças no mundo envolvente. Permite tomar decisões mais sábias. Veicula a mensagem de que a opinião dos liderados conta. Torna estes mais propensos a “abrir o bico”. Impede a síndrome do hamster que corre incessantemente na sua roda sem nunca sair do mesmo sítio.

 

Perversos versus virtuosos
Neutralizar neutralizadores perversos é um desafio valoroso. Mas importa acrescentar que alguns neutralizadores da liderança são virtuosos. São virtuosos os que contribuem para neutralizar lideranças tóxicas ou destrutivas – esses neutralizadores devem ser mantidos. São perversos os que impedem a boa gestão de recursos e a correcta prossecução dos objectivos organizacionais – e esses neutralizadores devem ser neutralizados.

Para líderes que pretendem servir-se mais do que servir, a ideia de neutralizar neutralizadores à sua acção pode ser muito apelativa e conduzir a uma liderança sem freios e contrapesos. Mas importa tomar consciência de que, se freios e contrapesos (isto é, neutralizadores virtuosos) tivessem sido aplicados à liderança do BES, da Raríssimas, do Lehman Brothers, da Enron ou da Volkswagen, estaríamos hoje menos incomodados com os escândalos que tanta tinta continuam a fazer correr. No que concerne à gestão do Estado, importa ter em mente que ele pertence aos cidadãos. E, contrariamente ao que frequentemente se presume, a qualidade da gestão pública não é necessariamente pior do que a da gestão privada. Portanto, neutralizem-se os maus neutralizadores – mas mantenham-se ou criem-se os virtuosos. Os freios e contrapesos que caracterizam a boa governança são neutralizadores – mas ainda bem que o são.

 

Este artigo foi publicado na edição de Março (nº.123) da Human Resources.

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