Para imprever o fim do mundo: Amor

A humanidade sempre foi apaixonada por imaginar futuros e essa é mesmo uma ferramenta importante para construção de novas realidades. Carros voadores, inteligência artificial, singularidade. Mas se você parasse agora para visualizar não o futuro, e sim o presente, você saberia o que fazer? 

Por Marcelle Xavier,  fundadora do Instituto Amuta e oradora no Rock in Rio Humanorama*.

 

 

“Não consigo pensar no futuro porque não sinto que tenho futuro. Isso é enervante. É preto, muito preto. Quando penso no futuro, não vejo nada. Eu só vejo destruição.”Khanna

 

No último ano, a pandemia do Covid 19, somada a catástrofes ambientais e políticas, convidaram-nos a parar de esperar por um futuro que talvez nem exista e suspender a busca por um “novo normal”. Estamos a ser convidados a  defrontar-nos com a dura realidade de que o futuro parece se desenhar como um lugar pior, e não melhor, de se estar.

O futuro previsto pelos mais conservadores dos cientistas nos conta que o melhor cenário do planeta é um sofrimento em escala nunca antes vista na humanidade e o pior cenário é a extinção humana. Já o presente parece um lugar duro demais, complexo demais, “VUCA” demais, “BANI” demais.

E assim, a retórica do futuro  tornou-se quase uma saída para negar um presente que não sabemos lidar. Mas, tamanho fetiche pelo “por vir” na realidade nos desconectou da real possibilidade de mudança que reside no agora.

 

“Nossa casa está em chamas. Eu não quero a sua esperança. Eu quero que vocês entrem em pânico.” Greta Thunberg

 

A incompreensão do futuro

Os desafios desenhados para o futuro superam a nossa capacidade de enxergá-lo, o que o teórico Timothy Morton classificou como um “hiperobjecto”. Um hiperobjecto, como a mudança climática, pode se caracterizar como um facto conceptual tão grande e complexo que desafia a percepção de tempo e espaço, uma vez que envolve todo o planeta e pode durar ou produzir efeitos cuja duração extravasa a escala da vida humana e, por isso, nunca será plenamente compreendido.

 

“A vida é o resultado de sucessivas interações entre incontáveis seres agindo uns sobre os outros para continuarem existindo. Nesse sentido, a realidade não é da ordem do meramente dado: são essas interações que tecem a materialidade mesma do mundo em que vivemos.” Alyne Costa

 

Mesmo que o fim dos tempos seja uma forte possibilidade, declarada pelas melhores análises científicas, ao afirmá-la trabalhamos no terreno das verdades únicas e acabadas, sendo que a nossa realidade não está meramente dada. O que precisamos agora é imprever o fim do mundo, através de uma desconstrução da verdade única e da crença de habitar em um mundo já acabado e portanto previsível.

Estudando sobre sistemas interdependentes, aprendi que eles se comportam de maneira emergente, vencem qualquer previsão. O que emerge é sempre fruto das interações e relações. Isso significa que ao transformarmos o grau de interconexão, a qualidade das conexões e o tipo de relações estabelecidas, nós afetamos a forma como o sistema irá se comportar e as propriedades que irão emergir ali.

Como parar de criar um escapismo para o futuro, ficar e agir no presente, se nos falta tempo, vontade, estômago até? 

Meu palpite é que o caminho para “estar”, “agir” e “influenciar” o presente reside na própria etimologia da palavra “presente”. Presente vem do latim praesens-entis e denomina aquele que assiste ou que se oferece a alguém. Estar no presente é, então, oferecer atenção, e para mim o simples ato de prestar atenção permite que algo exista e seja nutrido. E isso é amor.

Não aquele amor mitológico, inatingível, romantizado. Mas o amor quase como verbo intransitivo. Foi em uma das minhas tantas conversas sobre o amor que descobri as definições de Maturana de que amar é ver o outro como ser legítimo na convivência. É o amor que nos torna mais inteligentes e, como toda emoção, o amor é o que nos move a ação. 

Para mim amor é enxergar o outro como ele é, e assim nutrir a possibilidade de emergir sua melhor versão. Se queremos cultivar futuros não prováveis, mas desejáveis, então talvez não devêssemos focar tanto assim no futuro, e sim prestar atenção ao presente, ao amor, às relações.

Para mim é libertador e ao mesmo tempo desafiador encarar o facto de que nosso futuro não está dado, mas que ele depende da qualidade das relações dos sistemas que fazemos parte. Por isso, para mim, o nosso futuro depende da nossa capacidade de construir comunidades no agora.

É ao olhar para si próprio e compreender que tudo que sei ou que posso fazer não dá conta de lidar com os desafios do mundo, que me permito olhar para o lado e me deslocar até o outro. É ao admitir que eu não posso e não quero ficar sozinha, que eu preciso de outras pessoas, que eu quero amar e ser amada, e que eu não tenho a menor ideia de como fazer isso, que começamos a construir as relações que vão nos levar até lá.

Em um mundo que clama por individualismo, admitir que precisamos dos outros, que queremos ser amados, e que não sabemos muito bem como fazer isso não é fácil. Mas é talvez nesse movimento de vulnerabilidade perante um possível não futuro que nos permitimos olhar para o outro e também sermos vistos. E, com o olhar amoroso do outro, elevamos nossa capacidade de agir nesse presente que tanto nos desnorteia, somos capazes também de ser presença e assim fazer emergir o melhor presente possível.

O imperativo do nosso tempo nos convida a deslocar nossa atenção do “eu” para o “nós”. O desenvolvimento pessoal se torna desenvolvimento pelo coletivo – me desenvolvo para ser melhor para minha comunidade – e o amor se torna então veículo de engajamento político.

O que os desafios do nosso tempo nos pedem é uma evolução que precisa nascer do contato, do encontro, da fricção com o outro que gera movimento e acção. Porque eu, sozinha, não tenho capacidade de estar, agir e influenciar no presente. Porque o que está por vir não afeta somente o “eu”, afecta o “nós”.

No Instituto Amuta, criei uma metodologia para aqueles que querem se tornar designers de conexões. A estrutura do design aliada ao poder das relações nos possibilita fazer intervenções simples que ajudam a construir pontes, plantar sementes de diálogo, facilitar conexões e relacionamentos entre pessoas e redes, e assim transformar o que vai nascer. E o melhor é que ao transformar a realidade, fazemos isso junto com outras pessoas, criando relações que nos energizam e alimentam a nossa necessidade mais profunda: conexão.

Quando tudo parece difícil, complexo e confuso demais, é o amor que nos ancora no agora. É encarar que eu faço parte de uma comunidade e que o impacto da minha existência pode alterar a vida de milhares de pessoas vivas hoje ou que nem sequer nasceram ainda. E aí está o grande poder de transformação que desejo movimentar com o Instituto Amuta: mudando as relações acredito que podemos imprever o fim do mundo.

Nem a melhor retórica de futuro será suficiente para nos eliminar ou nos levar até lá se não houver uma reconexão com a possibilidade de sentir amor e agir como povo. O lado bom é que “enquanto houver amor, mudaremos o curso da vida” (Emicida) e, assim, ainda teremos o hoje para estar.

 

Nota: Texto desenvolvido a partir das reflexões criadas no Grupo de Estudos do Instituto Amuta conduzido por Marcelle Xavier a Marina Galvão de Setembro a Dezembro de 2020, com participação de Maurício Assis, Ana Siqueira, Cristiana Zimmermann e Luciana.

Marcelle Xavier é também membro da consultoria de aprendizagem nōvi, actua como designer de conexões, hacker cultural, criadora de comunidades e facilitadora do amor nas organizações

 

*O evento acontece de 14 a 17 de Setembro, 100% online e gratuito. Inscrições: https://festival.rockinriohumanorama.com

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