Qual é coisa qual é ela que jamais poderá sofrer cortes? Não, não é o salário

Por Anabela Veloso, bastonária da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

 

Gerir uma empresa ou organização implica pensar a longo prazo, ponderar alternativas e, naturalmente, tomar decisões. Algumas delas com impactos negativos no mais importante activo de qualquer projecto – as pessoas –, pelo menos quando avaliadas pelas suas consequências imediatas. Ao falarmos de salários, falamos disso mesmo. Ou seja, do que, sendo um direito do trabalhador, representa bem mais do que apenas isso, fazendo toda a diferença na motivação, na captação de talento e, irrefutavelmente, na vida de quem ali está diariamente.

Bem sabemos que o vencimento não é tudo. Aliás, atravessamos tempos em que, por exemplo, as empresas são incentivadas a garantir seguro de saúde e isso tem, inegavelmente, valor. No entanto, estamos perante um elemento decisivo e uma das questões mais sensíveis, cuja gestão exige que haja justificações claras e inequívocas, sem espaço para suspeições quanto à justiça dos critérios e à igualdade da sua aplicação. Se este espaço surgir, é factual a fragilidade do modelo e importa agir o quanto antes. E isto também se aplica quando os ajustes nesta matéria são sinónimo de algo que ninguém deseja: cortes salariais.

É precisamente aqui que começamos a desconstruir o mito. Sim, é possível reduzir salários mediante a verificação de determinadas condições, que em muito superam a mera vontade do empregador e que, estando contempladas no Código do Trabalho, procuram assegurar o equilíbrio entre a protecção do trabalhador, a viabilidade da empresa e a manutenção dos postos de trabalho.

Ora vejamos: em que contextos poderão, então, os salários ser sujeitos a reduções? Comecemos pela situação em que um colaborador passa do regime a tempo inteiro para um part-time. E os trabalhadores podem optar por isso quando, designadamente, têm filhos com menos de 12 anos ou, independentemente da idade, quando os descendentes são portadores de deficiência ou sofrem de alguma doença crónica. Mas este ajuste no salário também pode acontecer quando o trabalhador passa a assumir uma categoria inferior, seja a pedido do próprio, seja para benefício da organização. Contudo, e para salvaguardar os interesses do lado mais frágil – o dos trabalhadores –, este acordo tem de ser validado pela Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT).

Para lá destas situações, há ainda que ter em consideração excepções como a aplicável quando, após cessação de uma comissão de serviço, se verifica a retoma da categoria profissional anterior (habitualmente associada a um vencimento inferior), bem como aquela a que podem recorrer as empresas cuja actividade regista uma intensidade variável. Pensemos, nomeadamente, no sector do turismo. Nestes casos, é possível que, nos períodos de inactividade, os colaboradores aufiram de um salário inferior, havendo, evidentemente, limites e regras.

Por fim, importa lembrar contextos como o que vivemos aquando da pandemia e que, embora nos continuem a parecer improváveis, já nos surpreenderam uma vez, demonstrando que mais vale estarmos prontos para reagir e, assim, conseguirmos minimizar consequências e prejuízos para o país, para as empresas e organizações e, acima de tudo, para as pessoas. A expressão “lay-off” entrou no vocabulário de todos e, infelizmente, na vida de muitos. Neste caso, havendo um contexto atípico, relacionado com circunstâncias de cariz excepcional, pode verificar-se uma redução temporária dos períodos normais de trabalho ou uma suspensão do contrato de trabalho. Algo que também pode ocorrer quando tais medidas se demonstrem “indispensáveis para assegurar a viabilidade económica da empresa e a manutenção dos postos de trabalho”, sendo aplicada uma redução salarial, também de acordo com regras e limites devidamente estabelecidos.

Fica claro, portanto, que há situações balizadas e cuja observância pode viabilizar a redução salarial. Além disso, importa não esquecer que o salário, embora pago de uma só vez, integra diversas componentes, as quais, na verdade, podem ter naturezas distintas e estar sujeitas a regras diferentes. Por isso mesmo, esta é mais uma matéria em que, seja do lado do empregador, seja do lado do trabalhador, importará sempre contar com aconselhamento jurídico. E, obviamente, sendo trabalhador e restando alguma dúvida sobre o cumprimento das regras e das condições laborais, a ACT é a entidade competente para apresentação de queixas ou pedidos de esclarecimento.

Em tom de conclusão: em vez de tentar adivinhar a resposta, mais vale consultar um profissional habilitado, capaz de, com toda a segurança jurídica, o informar sobre as alternativas existentes, prós e contras associados, procedimentos a cumprir e passos a dar. Isto é, em vez de tentar adivinhar e na certeza de que não há apenas uma resposta certa, mais vale garantir que, consciente e informado, toma a decisão mais adequada ao seu caso. E, acredite, não há mesmo dois casos iguais.

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