Sobrantes da casa ao lado?

Por Joana Russinho, People Enthusiast, head of Human Resources e autora de “Eu e os Meus rh

“(…) Há quase um milhão de europeus sem abrigo. Portugal ocupa o sexto lugar no ranking europeu dos que moram na rua (…)” – dados de Setembro de 2023.

Da janela do meu escritório avistei-os. Um casal que dormira junto a uma parede guardava os seus pertences num trolley de viagem.

Nada sei sobre eles, mas imagino que a mais dura viagem de qualquer vida. A que se deixa uma casa, um abrigo, para se ir para a rua. O que se escolherá para colocar numa mala nestas circunstâncias?

Dobravam uma manta e roupa com cuidado. Aquele cuidado não era o de quem atira roupa para lavar para dentro de um trolley aquando de uma jornada. Havia todo um cuidado de preservação em cada gesto. Depois, lavaram a cara com água de uma garrafa e começaram a pentear-se.

Não consegui invadir mais a vida daquele casal como espectadora e desci.

Atravessei o largo que nos separava, cumprimentei-os com um desapropositado bom dia e enquanto lhes ofereci o que tinha balbuciei em jeito de desculpa: “apenas para um café e um bolo”. Constrangidos, retribuíram-me a saudação, olhos nos olhos, e agradeceram.

Não estive com um casal sem abrigo de longa duração, nem delinquentes (seja lá isso o que for), nem com pessoas que percebemos que sofrem de algum tipo de patologia que as atirou para a rua. Quando se voltaram para mim e me olharam nos olhos senti um calafrio por todo o corpo. Podia ser eu, ali, com o mesmo trolley.

Esta constatação da finitude de uma vida que se pensa que se conhece, que se finta, que se controla, mexeu comigo de uma forma tão violenta que demorei a conseguir escrevê-la para a partilhar, como estou a fazer.

Tentei racionalizar mil e um cenários para tentar que o meu cérebro fosse mais forte do que as minhas emoções. Não consegui. Independentemente do que possa ter sido a causa, eles, que podiam ser eu, estavam ali e por ali não ficaram depois de preparados para talvez trabalhar ou procurar trabalho, ou uma qualquer outra fonte de subsistência. Percebi-o pelo jeito como domaram os cabelos despenteados, pela roupa limpa e calçado cansado.

No dia seguinte saí de casa com o pequeno-almoço para lhes deixar. Fui mais cedo para o largar sem os melindrar.

Avistei ao fundo o que me pareceram ser eles a dormir, mas quando me aproximei percebi que se tratava de uma só pessoa. Não tinham pernoitado no mesmo sítio. Ali dormia outro alguém. Deixei o saco em silêncio, e comedida retirei-me.

Já passaram duas semanas e não me saem da cabeça. Onde estarão? E quantos mais na mesma condição? Não tarda o tempo mudará e provavelmente serão apenas mais números a engordar as estatísticas de um país onde parece que nem as evidências ancoradas em medições são suficientes para mudar o estado da nação.

Somos felizes até ao dia em que deixamos de o ser. E, atrevo-me a pensar, que neste país em falência cardíaca ninguém está livre de ser picado pelo fim de uma realidade até então familiar. “Cada um faz a cama em que se deita”, disse-me naquele dia alguém totalmente desprovido de empatia que ouviu o meu testemunho. “Enquanto tem cama”, respondi.

Talvez fosse a isto que o Papa Francisco se referiu como a Globalização da Indiferença. Atenção, os “novos sobrantes” não chegam só de longe, também chegam daqui. Quiçá da casa do lado.

Ninguém nos prepara para estas situações, mas sentimo-nos no direito de achar que há uma culpa a ser imputada aos que as vivem. O que até pode ser verdade, mas deixo a questão: e se fossemos nós a ter de procurar um local para dormir, com um trolley na mão?

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