Sobre a forma como nos entregamos ao/no trabalho

Por Isabel Moço, coordenadora e professora da Universidade Europeia

As épocas festivas, em particular esta que agora atravessamos, são ricas em manifestações, quer de pessoas, quer de empresas, de como se vive o trabalho, se vive no trabalho e como se relacionam com todos os stakeholders. Sabemos, porém, que a construção do festejo, da festividade e até da solidariedade “típica” destas épocas é, por vezes, apenas uma construção de narrativa associada à imagem que se deseja – e tantas outras vezes, da imagem que se considera expectável. Sabemos que de pouco vale o postal de Natal assinado pelo diretor, quando durante 365 dias ninguém deu conta que a pessoa existe, podendo até produzir um efeito perverso. Sigamos, portanto, os princípios da congruência, da fiabilidade e cidadania comprometida e assegure-se que se faz a celebração porque as pessoas estão agregadas, pois não será exatamente (só) com a festa de Natal que se consegue esse objetivo – pode ser um passo, mas tem de ser enquadrado com tantas outras ações, diárias, significativas e coerentes.
Recentemente, numa entrevista a propósito do novo filme “Poker Face”, Russell Crowe deu nota do que seria o desejável para cada uma das pessoas que trabalha – perspetiva com que me sinto absolutamente alinhada, embora compreenda que é apenas uma leitura da relação pessoa-trabalho-organização. Citando o ator e realizador do filme, “Vou trabalhar porque gosto de ir trabalhar. O facto de me pagarem é um bónus”, o que nos permite descortinar o verdeiro sentido do comprometimento e do envolvimento no, e com, o trabalho. Num cenário imaginário esta deveria ser a condição de todo o ser humano perante o trabalho e o empregador. Mas não é assim, bem se sabe, pois os motivos por que cada um trabalha, e em particular em Portugal, assentam muito numa postura transacional onde as recompensas em troca de trabalho, são o aspeto crucial da relação. Além do mais, nem sempre as pessoas têm possibilidade de escolher o seu trabalho ou mesmo o seu empregador, e poucas podem afirmar como ator na entrevista “faço os trabalhos que quero fazer”. Acrescente-se que nesta produção, Russell Crowe é argumentista, realizador e ator principal e que a sua decisão de avançar com este filme assentou na hipótese de que se não o fizesse, cerca de 300 pessoas ficariam sem trabalho durante a pandemia, mesmo que estivesse no rescaldo do falecimento do seu pai – por isso avançou, mesmo tendo de assumir vários papeis. Pois é aqui que a gestão de pessoas pode tirar lições e compreender que deve apontar os seus esforços para o desenvolvimento, recompensa e reconhecimento de que quem faz porque pode e porque quer – porque dos outros, sempre haverá.  Efetivamente os estudos apontam que os comportamentos extra-papel, a entrega, o envolvimento e o compromisso são mais presentes e evidentes em quem se sente seguro, “aproveitado”, valorizado e reconhecido. Falhamos ainda muito na distinção de quem o é e faz, e por isso talvez tenhamos uma espécie de cultura de trabalho “I can’t breathe, but I feel good enough” (Evanescence, “Good Enough”) – mas deveríamos “nivelar por cima” e inspirar-nos nos tantos bons casos que o fazem a sério. Felizmente, vamos tendo extraordinários exemplos de organizações, em que a gestão de pessoas procura, de facto, elevar a pessoa e realmente mostrar-lhe diariamente como é importante para o sucesso de todos.
Porque este deve ser o princípio da relação, aqui fica o repto: aproveitem as festividades para celebrar, sim, mas reconhecendo e tornando aqueles que realmente estão comprometidos, como inspiração e exemplo para os outros. Este período que agora vivemos é de coletivo, mas não queiram reféns do festejo só porque empresa organiza um jantar de Natal e as pessoas sentem uma “certa obrigação de marcar presença”. Ao longo dos muito anos que já levo de gestão de pessoas, tantas vezes ouvi “sim, bonito, mas…” e é natural que sempre existam outras necessidade e expectativas, podendo ser um sinal do valor que aquele acontecimento tem para as próprias pessoas. Por vezes as empresas dizem que as pessoas não reconhecem o que se lhes dá e o que se faz por elas, mas perguntem-se primeiro (gestores de pessoas) o que fazem por esse mesmo propósito durante todos os outros dias do ano.