
Steve Cadigan: «A tecnologia está a dar-nos o dom de redescobrir o que significa ser realmente humano.»
No actual cenário, Recursos Humanos, gestão e liderança organizacional não estão adaptados ao mundo da mudança. Por isso, é fundamental encontrar uma forma de construir um novo modelo de trabalho que valorize o talent, a carreira e as pessoas, garante Steve Cadigan, keynote speaker da 29,ª Conferência Human Resources, que decorreu ontem, no Museu do Oriente.
Muito pragmatismo, alguma disrupção e uma pitada de humor. Foram estes os ingredientes que Steve Cadigan, Talent hacker e advisor, usou na sua intervenção dedicada a “Rethinking work and talent in the Age of AI”.
O especialista norte-americano começou por relatar uma conversa com os filhos em que explicou adorar a área dos Recursos Humanos porque é a «arte de ajudar as pessoas e as equipas a tornarem-se excelentes». Até que um deles lhe perguntou se os Recursos Humanos «é mais arte ou mais ciência». E, a seu ver, é aí que reside o busílis. «Quando olho para a expressão Recursos Humanos, não vejo IA. E, enquanto organizações, líderes e especialistas em talento, estamos num momento realmente desconfortável para responder a essa questão.»
Hoje, qualquer economista, investigador, professor, cientista olha para a economia e garante nunca ter visto algo assim antes. «Nunca vimos tantas pessoas a mudar de emprego ou de carreira tão rapidamente.» E recordou o seu início de carreira, há umas décadas, em que recorria a um jornal para procurar emprego e tinha apenas cinco opções: «médico, advogado, professor, bombeiro, polícia.»
Hoje, a realidade é outra. Segundo um colega espanhol, Nacho de Pinedo, «o novo normal é nunca normal». O desconforto surge porque todo o mundo do trabalho e dos Recursos Humanos foi construído para a consistência, fiabilidade e previsibilidade. «O mundo está a mudar mais rápido do que nunca. E muito é agora desconhecido», afirmou Steve Cadigan.
Segundo o Global Talent Shortage Report de 2023, da Manpower, Portugal ocupa um preocupante quarto lugar, com 84%, atrás de Taiwan (90%), Alemanha (86%) e Hong Kong (85%). «Há cinco ou dez anos, era muito fácil encontrar alguém 90% qualificado para a descrição da função. Hoje é muito difícil. A maioria dos recrutadores com quem falo diz: “Tenho sorte se encontrar alguém 60% qualificado”.»
Tudo está a mudar rapidamente: carreira, sectores, empresas, competências, e nada disso vai abrandar, garante. «E isso é desconfortável porque os Recursos Humanos não foram preparados para isso.» Tudo, desde remuneração, a recompensas, benefícios, formar equipas, desenhar organizações, foi construído para uma mudança lenta.
O lado bom do turnover
O facto de as empresas andarem a falar nos últimos 20 anos em transformação digital também não veio ajudar. «No fundo a empresa está a dizer: não nos preocupamos consigo, preocupamo-nos com a tecnologia.» Tal como também não se têm preocupado com a criação de oportunidades. «Se o colaborador olhar para fora da empresa, vê mais escolhas. Por que há-de ficar? Não está a ser desafiado». Steve Cadigan chamou também a atenção para o factor salarial, «dimensão particularmente dolorosa nos Estados Unidos», em que, hoje, o colaborador apercebeu-se que «ganha mais dinheiro se sair e for para outro lado», devido às barreiras nos aumentos salariais.
Ao fazer uma pesquisa sobre o tempo médio de permanência de algumas das empresas mais criativas e bem-sucedidas, mostrou que na Uber corresponde a 3,1 anos e na Google e na Microsoft atinge os 4,8, argumentando que o sucesso destas empresas não se baseia nos colaboradores que celebraram 30 anos na empresa, mas sim «no facto de terem mais pessoas novas com novas ideias e novas formas de resolver problemas. Esse é o seu superpoder.»
Independentemente de ser tecnológicas ou não, Steve Cadigan defendeu que a forma como as empresas olham para o turnover tem de mudar. «Num mundo que muda rapidamente, quero que mais pessoas que já estiveram em lugares diferentes me ajudem a resolver os novos problemas que estou a enfrentar.»
Ao mostrar uma vista aérea de Silicon Valley, Steve Cadigan explicou que é o local onde existem «mais empresas a gerar mais valor de mercado, mais inovação e criatividade, do que em qualquer outro lugar do planeta», mas também onde «há mais pessoas a mudar de emprego mais rapidamente do que em qualquer outro lugar do mundo». Para o especialista, esses dois factores estão ligados. «Acredito que a razão do sucesso de Silicon Valley é porque as ideias estão a mudar e a crescer e as redes estão a expandir-se. Se mudar de emprego, conheço mais pessoas. A minha rede cresce. Tenho novas formas de resolver problemas porque trabalhei em algumas empresas diferentes.»
Exemplos que marcam pela diferença
Acontece que infelizmente, as organizações continuam a valorizar a lealdade e a ostracizar quem sai da empresa, salientou. E deu exemplos pioneiros que recorrem a outra filosofia.
A norte-americana Chick-fil-A que, no seu “career dashboard”, colocou três pessoas, duas das quais são ex-colaboradores, para mostrar que «sabem que são uma cadeia de fast food, que não é o emprego de sonho e que os trabalhadores não vão ficar ali para sempre, mas querem que o período em que estiverem na empresa seja incrível».
Já a Walmart fez uma experiência no ano passado em que deram a alguns dos colaboradores uma ferramenta de IA generativa e disseram «não sabemos para que é que isso serve, mas ouvimos dizer que isto da IA é muito porreiro. Por que não experimentam? E digam-nos que insights encontraram sobre como trabalhar ou comunicar melhor, sobre organizar as reuniões de forma talvez mais eficaz ou aumentar a satisfação do cliente.» Com a velocidade das mudanças tecnológicas é preciso fazer mais experiências, principalmente em Recursos Humanos, alertou. «Mas somos treinados para não correr riscos, para ter fiabilidade e consistência.» O sucesso foi tal que a Walmart alargou a experiência a outros 50 mil colaboradores. «Neste caso nem houve formação. Está aqui, descubra como funciona e depois diga-nos como podemos ajudar. É esse o mundo em que vivemos hoje.»
O último exemplo – e o seu favorito – veio do sector dos seguros, e destaca como a inteligência artificial está a ser utilizada na Prudential. Perante uma elevada taxa de saídas, a companhia de seguros construiu uma ferramenta que mapeou cada colaborador para cada função na empresa. Ou seja, só porque um colaborador trabalha em Recursos Humanos não quer dizer que vá trabalhar nessa área para sempre. E para ajudar a realizar esse “sonho”, a empresa disponibiliza ao colaborador formação, mentores e referências que migraram de outros departamentos. «Aqui está uma forma diferente de pensar sobre o assunto.»
Uma nova agenda do talento
Lançando a pergunta aos presentes: «num mundo onde as pessoas estão a mudar de emprego e de carreira mais rapidamente, se conseguirmos mantê-las connosco e ter essa cultura, por que não haveremos de o fazer?», desafia a construir uma “nova agenda de talento”.
«Em vez de dizerem “sente-se comprometido connosco?”, comecem a dizer “quero envolver-me consigo e com o seu futuro”. E talvez seja aqui, talvez seja noutro lugar. É preciso mudar a forma como vemos o emprego.» Sabendo que, actualmente, a média de permanência de um colaborador é de dois a três anos, a formação dessa pessoa não pode demorar um ano. «É preciso fazer essa mudança, estar pronto e esperar que ele saia. E não se sentir culpado por isso», aconselhou Steve Cadigan.
O compromisso tem de ser com a carreira das pessoas e a preocupação não pode estar apenas quando elas trabalham para a empresa. «Vamos preocupar-nos com as pessoas durante toda a sua carreira.»
E considerou que há uma oportunidade com a Inteligência Artificial. «O desafio que a IA apresenta é esta aparente ênfase exagerada e dependência da tecnologia e não da humanidade. Dizem-no que o futuro é feito de dados, ciência e números.» E recorreu a um exemplo de um neurocientista português, António Damásio, que estudou pessoas com lesões cerebrais devido a acidentes e descobriu que, quando a emoção não está envolvida, a tomada de decisão dos seres humanos fica comprometida.
Assim, terminou a sua intervenção com um alerta importante: «Cuidado com a sedução de que tudo gira à volta dos dados, da ciência e da tecnologia. Agora há uma grande tentação em apostar tudo na IA.»
No futuro e no momento em que nos encontramos agora, é fulcral reconhecer que a tecnologia está a dar «o dom de redescobrir o que significa ser realmente humano. As competências de comunicação, de empatia, de alegria, do cuidar, do amor e respeito. Estes são os poderes que temos e que precisamos de desbloquear agora mais do que nunca.»