Um Código do Trabalho estático, complexos ideológicos e a necessidade de fazer convergir os interesses das pessoas com os das organizações

A 24.ª edição da Conferência Human Resources juntou Nuno Ferreira Morgado, partner da PLMJ; Nuno Bernardo, vogal da comissão executiva da Confederação do Turismo de Portugal; e Daniel Caldas, HR manager no El Corte Inglês, numa conversa sobre as mudanças mais urgentes na lei laboral, de forma a dar resposta às reais necessidades do mercado de trabalho. 

 

Por Margarida Lopes

 

A XXIV Conferência Human Resources realizou-se ontem, dia 20 de Outubro, tendo como tema “As Grandes Reformas na Gestão de Pessoas”. A mesa de debate com foco nas grandes reformas nas políticas laborais contou com moderação de Ana Leonor Martins, directora editorial da Human Resources, que partilhou alguns dados da 43.ª edição do Barómetro Human Resources (também do mês corrente), no qual todos os especialistas do painel responderam que as reformas na Gestão de Pessoas são necessárias, 82%, sublinhou serem urgentes, mas, quando questionados se acreditavam que essas reformas iam acontecer a curto/médio prazo, mais de metade afirmou que não.

 

Este cepticismo – ou pouca confiança em eventuais reformas que dêem respostas às necessidades das empresas e dos profissionais – surpreendem?
Nuno Ferreira Morgado (NFM) – O cepticismo não surpreende porque, no essencial, a lei laboral tem passado por poucas mudanças. Houve uma mudança dramática a seguir ao 25 de Abril e passou-se a ter um paradigma laboral mais próximo daquilo que eram os interesses dos trabalhadores e depois houve uma evolução que teve depois uma quebra em 2012, com uma reforma, aí sim, significativa e imposta no programa de layout português, em que houve a introdução de alguns mecanismos de flexibilidade, das indeminizações, entre outras.

Não podemos esquecer que a lei laboral existe para proteger as pessoas. É numa relação em que alguém comprime a sua liberdade individual e coloca-se à disposição de uma empresa, de uma entidade para a servir em troca de uma remuneração. Tal coloca as pessoas numa relação de sujeição e é por causa disto que surge a necessidade de proteger as pessoas. O direito laboral não serve as empresas, serve em primeiro lugar as pessoas. Mas tem de reflectir um equilíbrio nessa relação contratual e esse equilíbrio ainda não foi conseguido.

Claramente que nos comparamos com os nossos parceiros europeus em muitas coisas e em muitas delas estamos bastante distantes. Temos uma perspectiva e um paradigma de olhar para as relações de trabalho, que continua a ser enviesado por um certo jogo político que se vai fazendo e em que não se consegue atingir o equilíbrio que é preciso entre os interesses das pessoas e das empresas. As organizações estão disponíveis para isso, porque entendem que as pessoas são um dos seus principais interesses, mas diria que a legislação tem uma perspectiva que tem de proteger as pessoas quer elas queriam quer não e isso é bastante diferente. Precisamos de fazer muito trabalho para reformar a lei laboral.

 

No Turismo, a lei é um facilitador ou um “bloqueador”? Onde é que sentem maiores constragimentos?
Nuno Bernardo (NB)- O Turismo é uma importante actividade económica deste país e claro que a legislação laboral condiciona a actividade das empresas. O direito do Trabalho depois do 25 de Abril surge numa vertente muito proteccionista, que depois teve alguns avanços significativos., Houve um período de um retomar de algumas medidas mais flexíveis na altura da Troika e, desde então, temos vindo a assistir a um conjunto de reformas que, de alguma forma, limitam a capacidade não só de contratar, como a capacidade de gerir a própria relação contratual. Houve uma reforma em 2019 que as empresas não tiverem tempo de pôr em prática por causa da pandemia.

O sector do Turismo enfrenta muitos desafios, pois representa muitas micro empresas, onde a capacidade de gestão dos empresários muitas vezes tem falhas e onde a capacidade de diálogo de influência dos próprios trabalhadores nas organizações também tem falhas. Enquanto estas barreiras culturais não forem ultrapassadas, vão haver muitas dificuldades. O Código de Trabalho é estático e muitas vezes tem dificuldade de ir ao encontro da dinâmica da economia.

 

E numa empresa com a dimensão e actividade do El Corte Inglês, como é que sentem este tema?
Daniel Caldas (DC)-  No sector do retalho, a maior preocupação é o work life balance, ou seja a capacidade que a empresa possa ter de proporcionar às pessoas uma conciliação quase perfeita entre a vida pessoal e a vida profissional. Há dois blocos essenciais neste sector, por um lado a parte de backoffice que, com a pandemia, adoptou o teletrabalho e por isso tem uma maior possibilidade de conciliação em relação ao outro colectivo, o da venda. Quem exerce estas funções não pode fazer teletrabalho e, por isso, o desafio da conciliação é muito maior.

Um dos principais problemas que temos tido está relacionado com as flexibilidades de horário que estão previstas na lei, porque está previsto que um horário flexível pode ser todos os dias, das 9h às 18h, com dois dias de descanso ao fim-de-semana e feriados e isso no sector do retalho é impensável, porque são os dias onde há mais negócio. Acreditamos muito no diálogo com as pessoas, mas é preciso fazer coincidir o interesse das pessoas com o interesse das empresas.

 

No que respeita às reformas mais urgentes na política laboral, e voltando aos dados do Barómetro Human Resources, a maioria respondeu a flexibilização dos modelos de trabalho, seguida da flexibilização dos vínculos contratuais e, só depois, a significativa distância, a flexibilização da remuneração. O que é que as empresas podem fazer no âmbito da flexibilização dos modelos de trabalho, cumprindo a lei?
NFM – Não há empresas que cumpram a lei a 100%, e nem isso é desejável porque seria impossível. O paradigma da lei laboral é uma empresa estável, previsível tipicamente industrial e, obviamente, que isto não representa nenhuma empresa em Portugal, ou representará muito poucas. Por isso percebe-se que nenhuma empresa cumprirá a lei – e ainda bem que assim é -, porque em larga medida tudo o que passa por gerir pessoas e empresas tem sempre associada uma componente de gestão de risco. É preciso correr riscos, as empresas podem pensar a sua estratégia e implementá-la, conhecendo os riscos e sabendo como é que os pode correr.

Todas as organizações têm colaboradores que não são produtivos e que dificilmente vão ser despedidos, pela dificuldade de despedir. O direito laboral é marcado pela barreira do despedimento. E esta é uma batalha perdida, será difícil um governo aceitar liberalizar os despedimentos.

Mas há outras coisas que podem ser feitas. Devia ser criado um direito de trabalho de crise, que permitisse que as empresas baixassem custos numa altura de necessidade sem destruir emprego. Vários países europeus têm mecanismos neste sentido, Portugal não tem, por isso, quando uma empresa chega a uma fase aguda, a única alternativa que tem é despedir, o que não faz sentido.

Em relação à flexibilização dos modelos de trabalho, a lei que existe é má. A lei liberal parece achar que esses regimes são feitos para explorar as pessoas, para as obrigar a trabalhar. É preciso alguma coragem para trabalhar nestes modelos.

 

Como é que a Confederação do Turismo de Portugal tem trabalhado estes temas e tentado trazê-los à discussão, para que a lei se torne mais próxima das realidade das empresas? E em que temas consideram mais urgentes agir?
NB – A Confederação tenta trazer a realidade para a mesa das negociações, mas o legislador é o governo e, por muito que as empresas queiram levar matérias específicas das suas actividades para a mesa das negociações, vai-se sempre para soluções generalistas. Há actividades, como o Turismo, que têm muitos fluxos de procura, tem ainda a sazonalidade – que embora esteja a ser esbatida é muito acentuada em algumas regiões do país, nomeadamente no Algarve -, e falta claramente um quadro de legislação flexível e adequado para estas empresas.

O legislador não tem optado por esta legislação, e isto deve-se a complexos ideológicos, falta-lhe conhecer a realidade das empresas. É claro que há formas de flexibilização na lei, mas o caminho que estamos a seguir é de reverter essas mesmas ferramentas, como o banco de horas individual, que foi revogado.

O Direito de Trabalho é o ramo do direito mais influenciado pela política e pelas condições sociais do país. Enquanto existir esta dicotomia entre o patrão e o trabalhador, vai haver muita desconfiança de parte a parte. Só quando existir confiança de parte a parte é que poderá partir-se para um modelo descentralizado. Mas ainda estamos muito afastados desse espectro e do que acontece em alguns países europeus.

Tem de haver uma mudança nas empresas, nos trabalhadores e também no governo. A semana de quatro dias por exemplo, é inevitável de ser discutida, mas no sector do Turismo será muito difícil implementar. As empresas e as funções não são todas iguais, têm necessidades diferentes.

 

E no El Corte Inglês, como é que têm “contornado” as dificuldades trazidas pela lei para responder às necessidades do negócio, mas tentando respeitar o Código do Trabalho?
DC – Temos de ser criativos e, em contacto como os nossos trabalhadores, encontrar soluções, que muitas vezes não estão protegidas legalmente, mas que são do interesse de ambas as partes. A fusão do interesse de ambas as partes tem de existir sempre, caso contrário não é um relação equilibrada e nunca vai funcionar.

É essencial conhecer a realidade das pessoas, perceber o que elas querem e exceder o que pode ser feito, porque quando a pessoa sente que é objecto de interesse e preocupação por parte da empresa vai devolver esse interesse e essa preocupação.

Há dois temas essenciais, o primeiro é a flexibilização da remuneração. Portugal é muito rígido neste aspecto e podia haver uma maior flexibilização, porque os interesses são diferentes. Neste momento, o El Corte Inglês tem dois colectivos diferentes, pessoas que estão na empresa há 20 anos e pessoas que entraram agora e são mais novas e não querem os mesmos benefícios que são atribuídos às pessoas que estão há mais tempo na empresa. Nem toda a gente quer um seguro de saúde, um seguro de vida, nem um cheque creche e, portanto, a adequação entre o estágio de vida da pessoa e a sua remuneração é muito importante.

O segundo tema essencial é a flexibilização do despedimento. A legislação portuguesa é complicada no que diz respeito à cessação do contrato de trabalho.

 

Nuno, a nossa legislação – e as reformas feitas – não está “em linha” com o que existe na Europa?
NFM – Eu não diria isso. Temos uma matriz legislativa comum na Europa, que é a matriz comunitária do qual têm saído múltiplas directivas que depois são adoptadas pelos vários países. Portugal vai sempre além daquilo que é exigido, mas nunca no melhor sentido. Tem-se assistido a um certo reforço das posições individuais na legislação em geral e na legislação por maioria de razão. É evidente que, culturalmente, há uma grande diferença entre Portugal e outros países, a legislação laboral em vigor que garante muito a posição do empregador e potencia a baixa produtividade.

Culturalmente, temos de mudar e isso começa pelas empresas, mas também pelos poderes públicos e, se conseguirmos dar esse passo e olhar para a realidade como ela é e não como aquela que seria o ideal, conseguia-se melhores resultados.

 

Acabou por responder à minha ultima pergunta, que seria para os três – o que se pode fazer para efectivamente avançar com as reformas mais urgentes, e quais são. Peço então a visão do Nuno e do Daniel…
NB-  É importante concentrar a discussão da legislação laboral na concertação, porque na concertação social há uma aproximação maior com a realidade empresarial. Não podemos esquecer que, do ponto de vista do mercado de trabalho, o slogan agora é que a Europa é uma Europa social e não uma Europa competitiva, porque a competitividade depois traz tudo o resto, a componente social e remuneratória. Tem de haver cada vez mais confiança entre a componente empresarial e dos trabalhadores, tem de haver mais diálogo social dentro da própria empresa, mais descentralização da negociação colectiva e, a partir daí, o Estado tem de ter políticas públicas menos invasivas e dar lugar a que a legislação laboral possa ser adaptada em função do sector e da empresa.

DC:  Concordo e subscrevo o que foi dito. Há necessidade de discutir determinados temas tendo em conta os sectores de actividade. É claro que a contratação colectiva aqui é muito importante, mas também sabemos que, muitas as vezes, os contratos colectivos andam a arrastar-se durante anos e não são negociados e isso prejudica os sectores.

O Código do Trabalho não responde às necessidades dos sectores sociais. Se olharmos para a realidade de cada sector, percebemos que as necessidades são muito diferentes. Sabemos que as necessidades das empresas não podem ser postas de parte, mas estão a ser negligenciadas.

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