Cuidar de quem cuida – uma questão de bem-estar organizacional

A entrada em vigor do Estatuto do Cuidador Informal foi um marco importante para a política da intervenção social e de saúde em Portugal, reconhecendo o papel relevante daqueles que asseguram a prestação de cuidados aos elementos mais vulneráveis da família.

 

Por Paula Guimarães, jurista e coordenadora do projeto do IPAV – Governação Integrada para o Cuidador Informal

 

Falamos de cuidadores informais principais, que asseguram, permanentemente, o apoio aos seus familiares mas, também, de cuidadores informais não principais que a Lei nº 100/2019 descreve como «o cônjuge ou unido de facto, parente ou afim até ao 4.º grau da linha recta ou da linha colateral da pessoa cuidada (Ex: filhos, netos, bisnetos, trinetos, irmãos, pais, tios, avós, bisavós, trisavós, tios-avós ou primos) que acompanha e cuida da pessoa cuidada de forma regular, mas não permanente, podendo auferir ou não remuneração de actividade profissional ou pelos cuidados que presta à pessoa cuidada».

Ou seja, muitas pessoas que além de serem cuidadores têm uma actividade laboral. Indivíduos que acumulam os seus deveres profissionais com a necessidade de prover cuidados a pessoas dependentes com carácter regular, várias vezes por semana e mesmo todos os dias.

Cidadãos que depois de trabalharem sete ou oito horas ainda asseguram o apoio físico e psíquico a pessoas cuidadas com doença grave, deficiência, doença mental ou demência, mais duas ou três ou, se com elas coabitam, o resto do seu tempo pessoal.

Trabalhadores que, com frequência, afectam o seu descanso semanal ou as férias a prestar cuidados. Colaboradores que nem sempre partilham esta sobrecarga e este esforço com os seus colegas e chefias.

No mesmo ano em que entrava em vigor no nosso país o Estatuto do Cuidador Informal, foi aprovada a Directiva (UE) 2019/1158 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de Junho de 2019 relativa à conciliação entre a vida profissional e a vida familiar dos progenitores e cuidadores.

Este documento veio chamar a atenção para a relevância da intervenção da família na prestação de cuidados e a necessidade de garantir uma harmonia entre os dois mundos, em especial para combater a desigualdade de género.

De facto, segundo o recente relatório do Parlamento Europeu para uma acção europeia comum em matéria de cuidados a prestação de cuidados informais é particularmente gravosa para as mulheres, uma vez que estas realizam, na EU, por semana, mas 13 horas de trabalho doméstico e de prestação de cuidados não remunerado.

E o relatório vai mais longe, sublinhando que 7,7 milhões de mulheres na UE permanecem fora do mercado de trabalho devido às suas responsabilidades em matéria de prestação de cuidados informais, em comparação com apenas 450 000 homens.

Esta desigualdade reflecte-se, também em matéria de desenvolvimento de carreira e, consequentemente, no domínio salarial e, de acordo com o mesmo relatório, esta situação agravou-se com a pandemia de COVID 19, que adicionou, em média, cerca de 13 horas adicionais de trabalho não remunerado por semana para as mulheres.

Também o parecer da Comissão do Emprego e dos Assuntos Sociais dirigido à Comissão das Liberdades Cívicas, da Justiça e dos Assuntos Internos “Rumo à igualdade de direitos para as pessoas com deficiência”, vem exortar os Estados Membros a aplicarem a directiva relativa à conciliação entre a vida profissional e a vida familiar dos progenitores e cuidadores, que introduz o direito a uma licença de cuidador de cinco dias úteis por ano; insiste em que devem ser consideradas modalidades especiais no que respeita à licença de cuidador.

Ser trabalhador e cuidador informal e, em particular, ser mulher trabalhadora e cuidadora é, pois, um desafio de difícil harmonização e que tem impacto na inserção no mercado de trabalho, na progressão e assunção de funções de responsabilidade, na saúde física e mental, na vida familiar e na situação financeira.

O equilíbrio entre a vida profissional e a vida privada previsto no ponto 9 do Pilar dos Direitos Sociais é, portanto, um dos desafios mais relevantes em qualquer política de responsabilidade social interna e em qualquer estratégia de bem-estar organizacional.

As tendências em matéria de cuidados, a longevidade e a evidente escassez de respostas públicas e de economia social, vão aumentar nas próximas décadas a necessidade dos cuidadores informais e determinar a emergência de uma sociedade compassiva.

Ao longo da nossa vida, cada vez mais extensa, seremos todos cuidadores e, seguramente pessoas cuidadas, pelo que as empresas não podem deixar de incorporar esta dimensão no desenho da sua gestão de pessoas.

É preciso ver o trabalhador de forma holística, para além do seu horário de trabalho e para além das suas funções, percebendo-o também como pai, mãe, filho, irmão, como cuidador e como acompanhante.

Essa dimensão é sempre trazida para a empresa e sentida ao nível da assiduidade, da pontualidade, da capacidade de inovar. Acompanha o colaborador ao longo da sua vida e pode ocasionar depressão, mas também pode desenvolver aptidões e capacidades aproveitáveis para a sua função.

O Estatuto do Cuidador Informal veio reconhecer o trabalhador cuidador não principal e declarar que o mesmo pode beneficiar de medidas que promovam a conciliação entre a actividade profissional e a prestação de cuidados, nos termos a definir na lei.

Aguardamos, ainda, a repercussão total desta Lei no Código de Trabalho, prevendo estas medidas mas o sinal de que a mudança acontecerá decorre da recente Lei n.º 83/2021, de 6 de Dezembro e que introduziu o  n.º 5 do artigo 166.º-A, «Tem ainda direito a exercer a actividade em regime de teletrabalho, pelo período máximo de quatro anos seguidos ou interpolados, o trabalhador a quem tenha sido reconhecido o estatuto de cuidador informal não principal, mediante comprovação do mesmo, nos termos da legislação aplicável, quando este seja compatível com a actividade desempenhada e o empregador disponha de recursos e meios para o efeito».

Independentemente das futuras disposições laborais que aumentem os direitos e benefícios dos trabalhadores cuidadores, o que as empresas podem, desde já, fazer é antecipar esse caminho e no âmbito das suas práticas de responsabilidade social, elaborar o diagnóstico da situação real dos seus trabalhadores enquanto cuidadores e criar um pacote de benefícios que os ajude a desenvolver essa meritória actividade, reduzindo, em simultâneo, a sobrecarga que cuidar acarreta.

O sector empresarial pode actuar como parceiro efectivo na implementação do Estatuto do Cuidador Informal, desenvolvendo políticas de solidariedade e inclusão, igualdade de género e combate à discriminação relativamente aos seus trabalhadores e poderão, igualmente, integrar redes e comunidades compassivas nas áreas da sua implementação, apoiando os demais cuidadores informais, nomeadamente através do voluntariado corporativo.

É nesse sentido que o Instituto Padre António Vieira (IPAV) tem vindo a desenvolver um projecto dirigido a autarquias e outras entidades, de modo que estas criem programas de responsabilidade social visando o apoio a cuidadores informais.

As empresas visionárias e alinhadas com os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas sabem que este é o caminho e que cada vez mais a vida pessoal e a vida laboral são indissociáveis e essa simbiose torna as empresas mais sustentáveis.

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