Day 104 Gapyear and day 62 quarentine

A COVID-19 não só desfocou os limites entre o nosso trabalho e as nossas vidas pessoais, como os potenciou exponencialmente.

 

Por Carla Gouveia, Executive Coach e Career Advisor

 

Escrevo este artigo 62 dias após o 13 de Março – início do confinamento –, e 104 dias depois do começo do meu gapyear. E escrevo porque senti necessidade de partilhar algumas reflexões e emoções que, por via dos dois meses de vivência em clima COVID-19, vieram ao meu encontro.

As emoções sentem-se de forma mais intensa em nós, e esbate-se a fronteira entre o eu pessoal e o eu profissional. Constatei que há dois grupos de pessoas que se evidenciam pelos comportamentos distintos: as ansiosas e deprimidas, que não conseguem racionalizar o medo, nem escondê-lo dos outros; e as mais serenas, que são capazes de racionalizar e controlar o medo, conseguindo tirar partido da inédita situação que estão a viver. Em termos pessoais, sinto que faço parte deste segundo grupo. Encaro o “hoje” como um processo de crescimento pessoal e, até, profissional.

Tenho aproveitado para aumentar as minhas competências no que diz respeito ao saber ser e ao saber fazer. Saber ser, porque passei a valorizar mais viver num mundo mais calmo, sem perder horas no trânsito, consumindo apenas o essencial para a sobrevivência – que é infinitamente menos do que antes pensávamos necessário –, sentir o ar muito menos poluído, ouvir com nitidez o chilrear dos passarinhos, olhar para a minha casa como um espaço de conforto e bem-estar, vivendo em cumplicidade e harmonia com os meus filhos.

Não há dúvida de que trabalhar online, a partir de casa, modificou bastante a imagem que cada um tinha aos olhos dos outros, nomeadamente, aos dos seus colegas de trabalho. Há quem apareça desgrenhado e não consiga manter-se com aquele ar incauto e perfeito. Há filhos a passar por cima dos pais enquanto eles estão numa reunião. Há pessoas da família que entram na sala, alheias ao facto de se estar numa videoconferência de trabalho.

Agora que os escritórios e as empresas começam a abrir novamente as portas, terão imagens inesquecíveis para os seus registos. Aquele dia em que a criança pulou para o colo, aquela barba de 30 dias, o cabelo gigante e a raiz branca daquele loiro pintado, que acabou de entrar na sala de reuniões.

Mas será isso o que realmente vimos? Ou vimo-nos na nossa humanidade e na realidade que, afinal, somos todos pessoas normais, que todos temos um lado pessoal para além do profissional, e que talvez a divisão que fazemos do nosso “eu pessoal” e “eu profissional” não seja uma divisão psicologicamente saudável, afinal de contas.

Sabem, somos pessoas inteiras. E sermos capazes de ser nós mesmos no trabalho, ou em qualquer lugar, faz-nos felizes e faz-nos sentir melhores. Pelo menos a mim faz-me.

Ser pessoa significa não ser só competente profissionalmente, mas também ser responsável para com a comunidade, em geral, e com a família, em particular. Ser pessoa é ter direito à preservação da sua saúde mental e física. E isto é muito mais verdadeiro, muito mais saudável, do que viver uma vida em que nos compartimentamos, em que fazemos malabarismos para parecermos que somos super-homens ou super-mulheres.

Aprendi muito neste tempo. Estudei e preparei-me para um mundo melhor, mais humano, mais cooperante, mais amigo, mais sereno, com mais desafios em termos de transformação individual. Transformar significa crescer numa visão positiva de nós mesmos. Significa um processo sustentado de aprendizagem de si mesmo e uma mudança positiva. É nessa abordagem de crescimento positivo que a transformação acontece.

Desejo, vivamente, que, à medida que o mundo comece a reabrir-se, como já está a acontecer, não sejamos demasiado rápidos a voltarmo-nos a fechar uns aos outros, e, em vez disso, continuemos a trabalhar juntos, como seres humanos na sua plenitude, fazendo o melhor que podemos e sabemos, por todos.

 

Este artigo foi publicado na edição de Junho (n.º 114) da Human Resources.

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