Direito a desligar: prós ou contras?

Desde que foi detectado, o novo vírus Covid-19 não tem dado tréguas à Europa, obrigando vários países, num curto espaço de tempo, a estabelecer medidas excepcionais de contenção da pandemia. Contra-atacarmos o vírus com o distanciamento e/ou isolamento social. No entanto, a travagem abrupta que se fez sentir no tecido empresarial fez com que Portugal e grande parte do globo parasse.

 

Por Clara de Sousa Alves, da área de Laboral da Cerejeira Namora e Marinho Falcão

 

Em consequência, o confinamento alavancou grandes alterações, não só a nível tecnológico e económico, mas também a nível social. O mundo laboral e, por inerência, as relações de trabalho não foram excepção. Se a relação de trabalho clássica/típica estava já sobre uma crescente pressão, em resposta a estas adversidades tal cenário foi exacerbado, no qual o recurso a relações de trabalho atípicas, como o teletrabalho, o crowdwork ou o stand-by time, surgiu como solução para as empresas se manterem competitivas.

Vemos hoje enaltecidas as vantagens do já velhinho teletrabalho, mecanismo pouco utilizado, mas que agora tanto Empregadores, como Trabalhadores recebem de mãos abertas. Em termos de mudanças mais profundas, as modalidades de trabalho que derivam da ascensão da gig economy, apesar de ainda serem catalogadas como inovações laborais, têm despertado cada vez mais curiosidade, afirmando-se o trabalho organizado através de plataformas em linha e de aplicações para dispositivos móveis como uma realidade em ascensão.

As mudanças no mundo de trabalho irão continuar e o circunstancialismo em que vivemos acabou por se constituir como a alavanca para mudanças mais profundas que, apesar do seu prognóstico ainda reservado, certamente, se intensificarão no futuro.

Assim, com um conceito jurídico de relação de trabalho em mutação e numa altura em que a hiperconectividade laboral se tornou a realidade dos portugueses, impõe-se o repensar da consagração do direito ao descanso, também conhecido como direito a desligar ou direito à desconexão.

Numa altura em que se fecharam as portas físicas e se abriram portas das plataformas digitais, merecerá o direito ao descanso uma redobrada consagração?

Pese embora as várias formas de trabalho atípico proporcionem meios importantes para que as empresas e os trabalhadores atinjam a flexibilidade, estas são frequentemente associadas a consideráveis lacunas. Por esse motivo, é necessário ter presente que, por mais mudanças que se registem na organização do trabalho, a situação excepcional que vivemos não pode ser o mote para a justificar a mesma inércia e os velhos atropelos aos direitos dos trabalhadores.

Observamos que a alteração dos hábitos profissionais criou uma cultura assente numa ligação permanente à actividade laboral, o que acaba por distorcer a organização do tempo de trabalho e, consequentemente, propiciar um ambiente de permanente stress e exaustão.

Há hoje uma diluição das fronteiras entre a vida profissional e a vida pessoal, e apesar de tal ter efeitos negativos na saúde física e psíquica dos trabalhadores, tem também um grande impacto na sua produtividade. Note-se que, maior produtividade não equivale necessariamente a mais horas de trabalho, o que aliás em Portugal é evidente, tendo em conta que o país é dos que regista maiores índices de permanência dos trabalhadores nas empresas sem que, contudo, isso se traduza num aumento da produtividade.

E se é certo que repartição dicotómica entre tempo de trabalho e período de descanso nunca foi linear, mais evidente se torna a necessidade de limitação da prestação de trabalho.

Efectivamente, já antes da silenciosa entrada do vírus e do incremento do teletrabalho este tema era discutido em Portugal, a reboque da França e da Espanha que, de forma pioneira, decidiram consagrar este direito. No entanto, e pondo agora de lado a avalanche legislativa que tem sido publicada (nomeadamente os avanços e recuos quanto às leis laborais) entendemos que esta temática não deve ser uma prioridade.

Em primeiro lugar porque o direito subjacente ao direito a desligar já se encontra consagrado, quer na Constituição da República Portuguesa, nomeadamente o direito ao repouso e ao lazer, ao descanso semanal, a férias periódicas, à limitação da jornada de trabalho; quer no Código do Trabalho onde surge como efeito natural da limitação da jornada de trabalho e do balizamento do tempo de trabalho através da definição do horário de trabalho.

Em segundo lugar porque o direito a desligar, na esteira do que tem vindo a ser a sua definição, traduzir-se-ia numa verdadeira limitação da liberdade dos trabalhadores. Por conseguinte e antes de avançar com a regulamentação jurídica de tal direito, seria necessário, numa primeira abordagem, aprofundar a análise de várias questões. E se a vontade do trabalhador for, efectivamente, por uma questão de opção e gestão, trabalhar fora do seu horário de trabalho? De que forma poderiam os trabalhadores exercer esse direito? De que forma esta consagração iria afectar os empregadores? Poderiam os empregadores obrigar os trabalhadores a desligar? Num quadro de forte competitividade, em que trabalhar muito significa ser um bom trabalhador, tornar-se-ia ténue a linha que distingue a imposição pela entidade patronal e a vontade própria do trabalhador.

A efectivação prática deste direito encontraria sempre grandes dificuldades. Está enraizada em Portugal a mentalidade de que o mau trabalhador é aquele que não se mantém contactável nos seus períodos de descanso, pelo que, a consagração deste direito deixaria de ser apetecível para alguns trabalhadores, que com receio de se tornarem dispensáveis, acabariam por fazer dele letra morta.

Concluindo: o direito ao descanso já está efectivamente garantido no nosso ordenamento jurídico laboral e o papel do direito, neste novo contexto, deve ser o de limitar o tempo de trabalho, preservar períodos de repouso, salvaguardar a saúde do trabalhador e garantir a autodisponibilidade, para que não se veja reduzido à unidimensional condição de força produtiva, despido dos múltiplos atributos da sua humanidade. Para tal, e numa perspectiva muito realista, é evidente que as empresas podem (e devem) colaborar para que a separação do tempo de trabalho e tempo de descanso se torne mais vincada, assumindo não só a responsabilidade pelo cumprimento dos limites da jornada de trabalho como também garantindo e fiscalizando a observância desses limites. Contudo, sob pena de sobrecarregarmos a balança da responsabilidade para os empregadores, os trabalhadores também deverão ter um papel activo no que a esta questão diz respeito, resistindo ao feitiço da sensação de liberdade aliada às novas formas de trabalho sem que negligenciem o descanso, que assume especial relevância não só a nível da saúde, mas também na manutenção do work-life balance.

Reforçamos, portanto, a ideia de que a responsabilidade pelo cumprimento das regras no que respeita à organização do tempo de trabalho deve ser partilhada entre empregador e trabalhador.

É certo que vivenciamos um momento histórico em que se impõem respostas e medidas rápidas em matéria laboral, contudo, neste plano e tendo em conta as prioridades existentes, a fiscalização e aplicação do direito vigente deverá sobrepor-se à (des) regulamentação legislativa, forçada e precipitada.

 

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