Estado de Emergência: é justificação para o não cumprimento de contratos? Depende.

Têm surgido diversas dúvidas no sentido de saber se o estado de emergência pode ser considerado caso fortuito, ou de força maior, ou de alteração anormal das circunstâncias justificativas da impossibilidade de cumprimento de contratos, ou da respectiva modificação. É concebível que para vários tipos de contratos o estado de emergência não configure qualquer das referidas figuras, o que, sendo o caso, poderá expor a parte que toma tal decisão ao dever de indemnizar a outra parte.

 

Para esclarecer essas dúvidas, a Pares advogados fez uma análise sobre o impacto do Estado de Emergência nos Contratos Civis:

1. O que se entende por caso fortuito ou de força maior?
A jurisprudência dos tribunais portugueses tem definido caso fortuito ou de força maior como o acontecimento natural ou a acção humana que, em si mesmo e nas suas consequências, é, de todo, inevitável, imprevisível e insuperável, tornando impossível ou manifestamente desproporcionado o cumprimento de uma obrigação emergente de contrato, sem culpa do obrigado, isentando-o, por isso, de responsabilidade e da consequente obrigação de indemnização.

São exemplos clássicos de caso fortuito ou de força maior os fenómenos naturais extremos como os furacões, tufões e tempestades, mas também actos do homem como guerras, revoluções, greves, entre outros.

As pandemias, tal como a da COVID-19, podem, em teoria, ser também consideradas um caso fortuito ou de força maior.

 

2. O estado de emergência constitui um caso de força maior justificativo do não cumprimento do contrato?
A análise deve ser feita caso a caso pois depende, naturalmente, do tipo de contrato em causa.

Vejam-se os seguintes exemplos:
Exemplo 1 = A contratou com B (empresa dedicada à promoção de eventos) a realização da festa do seu casamento no dia 4 de Abril de 2020. Por força do estado de emergência entretanto prolongado, B viu-se impedida de o fazer por força do encerramento das suas instalações e suspensão da actividade decretada pelo Governo.

A situação acima descrita consubstanciará um caso de força maior impeditivo do cumprimento por parte de B, neste caso por impossibilidade objectiva, da sua obrigação de realizar a festa do casamento de A.

Exemplo 2 = A (cliente) mandata B (advogado) para que este elabore e apresente uma contestação a uma acção até final do mês de Março. Por força do estado de emergência, B viu-se obrigado a deixar o escritório e a ficar em casa.

A situação descrita neste segundo exemplo já não constituirá um caso de força maior pois é de admitir que o serviço que B se comprometeu prestar pode sê-lo a partir de casa.

Nos exemplos acima estão em causa dois tipos de contratos de prestação de serviços cuja execução é afectada em termos distintos pelo regime de estado de emergência em que vivemos.

No primeiro caso seria defensável a invocação de caso de força maior impeditivo do cumprimento do contrato, atento o nexo de causalidade existente entre as medidas decretadas para a execução do estado de emergência e a interrupção dos trabalhos, o que já não aconteceria no segundo.

Daí que somente em função do caso concreto seja possível reconduzir com certeza uma
determinada situação ao conceito de força maior.

 

3. O que se entende por alteração anormal das circunstâncias?
O regime legal da resolução ou modificação do contrato por alteração anormal das circunstâncias encontra-se genericamente previsto nos artigos 437.º e seguintes do Código Civil.

Do ponto de vista jurídico, uma alteração anormal das circunstâncias corresponde a uma modificação anómala e superveniente do contexto em que as partes decidiram contratar,
que torna inexigível à parte afectada pela alteração o cumprimento do contrato, conferindo-lhe o direito de o resolver ou modificar, segundo juízos de equidade.

Caso aquele que foi afectado pela alteração das circunstâncias opte por pôr termo ao contrato, a outra parte pode opor-se a essa decisão declarando aceitar a modificação do contrato nos termos referidos.

Note-se que não é qualquer alteração das circunstâncias que confere à parte afectada o direito à resolução ou modificação do contrato, mas apenas aquela alteração que torne a exigência das obrigações assumidas gravemente atentatória dos princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato.

 

4. O estado de emergência acarreta uma alteração anormal das circunstâncias?
A resposta varia também consoante o caso concreto. Recorramos novamente a um exemplo:

A (dono da obra) contratou com B (empreiteiro) a realização de uma empreitada, acordando que, pelos materiais necessários à execução da mesma, que B se encarregou de obter, A pagaria a B € 50.000,00.

Por força do estado de emergência entretanto decretado e, em especial, das restrições impostas à liberdade de circulação, o preço dos materiais aumentou 80%.

Numa situação como esta, B poderia invocar que o estado de emergência acarretou uma alteração anormal das circunstâncias em que contratou com A, pois não se pode dizer que um aumento abrupto e tão significativo do preço dos materiais estivesse coberto pelos riscos do contrato.

Neste caso, B teria o direito de pôr termo ao contrato ou exigir de A uma modificação do mesmo, no sentido de A, pretendendo manter o contrato, poder suportar a totalidade ou parte do aumento.

Caso B pretendesse apenas pôr termo ao contrato, A podia opor-se a essa resolução, aceitando modificar o contrato no sentido de suportar a totalidade ou parte do aumento
dos materiais.

Mas, se o aumento dos materiais tivesse sido de apenas 5% ou 10% dificilmente se poderia
defender que tal consubstanciaria uma alteração anormal das circunstâncias, na medida em que um tal aumento é possível de ocorrer em condições de mercado normais e estará, em princípio, dentro da margem de lucro do empreiteiro com a revenda dos mesmos, o que significa que estaria coberto pelos riscos próprios do contrato, não afectando os princípios da boa fé que se exija a B o cumprimento do contrato apesar deste aumento.

 

5. Qual a diferença entre caso de força maior e alteração anormal das circunstâncias?
Os casos de força maior determinam invariavelmente a impossibilidade de cumprir a obrigação nos termos previstos no contrato.

A alteração anormal das circunstâncias não impede o cumprimento do contrato mas, por não estar coberta pelos riscos próprios do mesmo, torna o respectivo cumprimento, à luz
dos princípios da boa fé, excessivamente oneroso e, como tal, inexigível.

 

6. Como posso saber se o estado de emergência consubstancia um caso fortuito ou de força maior ou uma alteração anormal das circunstâncias justificativas do incumprimento contratual ou da modificação das condições contratuais?
Saber se o estado de emergência reveste contornos que permitem qualificá-lo como um caso fortuito ou de força maior que torna lícito o não cumprimento de um contrato, ou se configura uma alteração anormal das circunstâncias em que as partes tomaram a decisão de contratar, fundamentando a sua resolução ou, pelo menos, a sua modificação, assume, assim, importância crucial.

A sua prévia e correcta qualificação jurídica num determinado contexto contratual, nos termos acima enunciados, pode representar a diferença entre a recusa legítima do respectivo cumprimento ou da exigência da sua modificação, e o incumprimento (injustificado), total ou parcial, do contrato, gerador de responsabilidade.

Na esmagadora maioria dos casos, tal qualificação é difícil, exigindo uma análise casuística, com recurso a conceitos jurídicos complexos e na qual o contributo da doutrina e a jurisprudência serão fundamentais.

A título preventivo, recomenda-se que se comece pela realização de um levantamento e análise dos contratos actualmente em vigor para aferir da existência de cláusulas que versem sobre eventos de força maior e/ou de alteração anormal das circunstâncias, no sentido de verificar se as mesmas identificam situações reconduzíveis a uma das referidas figuras e procedimentos a adoptar em caso afirmativo, nomeadamente quanto à eventual necessidade de notificação da contraparte num determinado prazo para que a invocação possa ser atendida.

Caso se conclua que o estado de emergência constitui um caso fortuito ou de força maior justificativo do incumprimento de um determinado contrato, deverá a parte que o pretende invocar fazê-lo tão rapidamente quanto possível, através de comunicação à outra parte, efectuada nos termos legais ou previstos contratualmente.

O mesmo se diga relativamente à alteração anormal das circunstâncias: concluindo-se que, numa determinada situação contratual específica, o estado de emergência reveste características que o permitem reconduzir a esta figura, deverá a parte lesada transmiti-lo à contraparte, justificando-o, e comunicando-lhe igualmente a intenção de pôr termo ao contrato ou de o modificar, sendo que, neste último caso, deverá também informar as novas condições em que pretende que o contrato seja executado.

Naquele primeiro caso – resolução do contrato –, a outra parte poderá, como se viu, opor-se. Se assim for, deverá também comunicá-lo à parte lesada de forma expedita, transmitindo-lhe a sua aceitação à respectiva modificação e os novos termos contratuais em que a mesma deve ser realizada.

A adopção das medidas acima recomendadas poderá evitar que as posições das partes se
extremem e culminem em litígio.

 

7. Conclusão
Apenas uma análise casuística das situações contratuais concretas poderá permitir qualificar o estado de emergência como um caso fortuito ou de força maior, um caso de alteração anormal das circunstâncias, ou nenhum dos dois.

Naturalmente que, consoante a qualificação, que se fizer as consequências serão distintas, podendo, nuns casos, justificar o incumprimento contratual (caso fortuito ou de força maior), noutros a modificação das condições contratuais segundo juízos de equidade (alteração anormal das circunstâncias) e, noutros ainda, não constituir fundamento nem para uma coisa, nem para outra, como acima se referiu.

É, pois, avisado aferir o impacto que o estado de emergência pode ter na execução de determinado contrato e determinar se tal impacto constitui fundamento para o qualificar como caso fortuito ou de força maior ou como uma alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar, de forma prévia a uma tomada de decisão unilateral de resolução ou modificação do mesmo pois, como se tentou ilustrar, é concebível que para vários tipos de contratos o estado de emergência não configure qualquer das referidas figuras, o que, sendo o caso, poderá expor a parte que toma tal decisão ao dever de indemnizar a outra parte.

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