Isabel Leal, ISPA: «A promoção da saúde e do bem-estar ainda está longe de ser um valor culturalmente implantado»

Nunca se falou tanto de saúde mental como hoje. A pandemia covid-19, que atingiu o mundo em Fevereiro de 2020 obrigou a mudanças bruscas em todos os aspectos da nossa vida, sendo que um dos que mais foi impactado foi, sem dúvida, o do trabalho. Mas será que passados dois anos alguma coisa mudou relativamente a este tema? Será que as empresas e os empregadores mudaram a sua visão e a forma como abordam esta temática? Foi exactamente isso que tentámos perceber junto de Isabel Leal – Reitora do ISPA – Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida.

Por Sandra M. Pinto

Analisando tudo o que passou, Isabel Leal chega à conclusão que «para existir uma genuína política que contemple o bem-estar no trabalho tem de haver uma atitude geral, muito diferente da actual, no que concerne ao trabalho e ao seu valor, mas também à natureza dos vínculos contratuais e no limite em relação mesmo à importância do humano». Perante isto, a especialista acredita que «está quase tudo por fazer» quando se fala de saúde mental no universo laboral

 

É positivo ou negativo o balanço que faz sobre a forma como o país lidou com a pandemia relativamente a este tema?
Há aspectos positivos e aspectos negativos. O facto de as pessoas aderirem ao programa de vacinação é, sem dúvida, muito positivo. A também adesão à testagem, sobretudo no final de 2021, diz genericamente que a maioria da população adere às directivas e indicações que lhe são transmitidas.
Mas também há aspectos negativos. A comunicação institucional não foi das mais cuidadas e também os media nem sempre deram o seu melhor. Em ambos os casos, o desconhecimento das ciências comportamentais, facilitou em alguns momentos, ou climas de medo ou de desdramatização não suportados pelo conhecimento científico. Dado o fraquíssimo investimento, quer das políticas públicas quer das privadas, na saúde mental já antes da pandemia, os efeitos dos poucos recursos disponíveis fizeram-se sentir mais do que seria eventualmente necessário.

Passados dois anos de pandemia diria que a saúde mental da população portuguesa está enfraquecida?
Indiscutivelmente! A nossa como, provavelmente, a de todo o mundo. É preciso que se perceba que todos nós modelamos o nosso comportamento com base em diversos aspectos, mas em que o papel das aprendizagens e das experiências que vamos tendo ao longo da vida, é muito relevante. A partir disso criamos expectativas que nos dão um quadro de previsibilidade em que nos sentimos tranquilos e seguros. Quando as circunstâncias, como agora, nos confrontam com cenários de incerteza continuada e sistemática o mais provável é que os recursos psicológicos, mas também psico-sociais (a família, o trabalho, os amigos) de que dispomos normalmente e que usamos quotidianamente para gerir a nossa vida, entrem em falência. Aí as respostas são variadas consoante os próprios sujeitos mas, não é por acaso, que os clínicos referem um aumento significativo de pedidos de ajuda em que as perturbações de ansiedade, os quadros obsessivo compulsivos, as preocupações excessivas com a saúde e o medo e a angustia, são dominantes.

Se não fosse a pandemia acha que o tema da saúde mental continuaria a ser evitado?
Eventualmente. Ainda assim, não tomo como garantido que o destaque que tem sido dado nos últimos tempos tenha grandes consequências práticas a médio prazo. A saúde mental por vezes funciona como um enorme chapéu de chuva conceptual em que se descarta todos os intangíveis.

Nas empresas e organizações foi imposto o teletrabalho. Que impacto teve ele nos profissionais?
A investigação que tem sido feita mostra que não há uma só resposta. Para muitos, o teletrabalho foi uma bênção, para outros uma maldição e, para muitos outros, a vontade de permanecer em sistemas híbridos parece a tendência dominante.
Em qualquer caso, teve de haver uma reorganização que podemos considerar como complexa porque envolve ritmos biológicos, organização familiar, organização de espaços, interacções sociais e vida social, grupos de pertença e de referência. De um momento para o outro tudo mudou e os ajustamentos a novas realidades demoram tempo. Ao fim de dois anos em que esses ajustamentos já estão feitos, com mais ou menos dificuldades, mudar outra vez, implica novo processo de ajustamento, o qual também demorará.

Acha que os líderes souberam estar atentos à saúde mental dos seus colaboradores?
Também aqui a variabilidade é enorme. Por definição, as organizações preocupam-se com os seus colaboradores na medida em que isso afecta o seu desempenho. Há estruturas empresariais que são atentas a isso porque já o eram, mas, estou em crer, que num sistema de pequenas e médias empresas como é o do nosso país, a atenção que existe inscreve-se mais no quadro das relações interpessoais estabelecidas que em verdadeiras estratégias empresariais.

Da parte dos trabalhadores, parece-lhe que se desvaneceu o medo ou vergonha de falar em saúde mental?
Uma das emergências interessantes que se tem verificado com a pandemia é o turnover dos empregos. Muitas pessoas que estavam acomodadas a empregos, por vezes há muitos anos, resolveram-se a mudar e, aparentemente, em muitas áreas o mercado de trabalho tem estado bastante dinâmico. Posso supor que isso tenha que ver com os tais quadros de incerteza sistemática que por um efeito rebound tenham propiciado novas formas de ajustamento. Ou seja, diria que mais pessoas encontram alternativas para si mesmas fora do quadro estrito do emprego que tinham e a que estavam habituadas o que é uma excelente resposta de ajustamento. Julgo também que estes casos são os que implicam uma superação de esquemas de funcionamento anteriores.
Se as pessoas perderam o medo ou a vergonha de falar daquilo que as aflige por causa da pandemia, não tenho nenhum dado que me permita acreditar nisso.

Que estratégias relativas à saúde mental surgiram na pandemia e que na sua opinião vão permanecer?
Estas de que estava a falar. Procurar novas soluções pessoais, relativizar a noção de segurança, ousar experimentar, ousar mudar. Também se deu destaque na pandemia ao auto-cuidado: o exercício, a dieta a aspectos da conciliação vida pessoal- vida profissional. Essas são boas estratégias. Também há as menos conseguidas: fechar-se em casa, evitar contactos sociais; viver em quadros de ansiedade generalizada em que tudo é complicado difícil e ameaçador; agarrar-se a rotinas e a rituais como garante de que se controla alguma coisa; somatizar, etc.

As doenças mentais não têm cura, dizia-se antes da pandemia. Essa percepção mudou?
Há algumas doenças mentais que são condições crónicas que não se curam, mas que se gerem, até bastante bem, com ajuda adequada. No entanto, aquilo de que se fala habitualmente como problemas de saúde mental não são essas, antes se refere a um domínio muito mais fluído em que as alterações se registam ao nível da ansiedade e do humor (eixo depressão-mania) e que mesmo que se possam manifestar em algum momento de formas muito exuberantes, se tratam. Mesmo.
Dos dados que tenho, acho que dá para dizer que a percepção da doença mental tem vindo a mudar consistentemente, mesmo antes da pandemia, em direcção à necessidade do auto-cuidado em termos, já não de doença mental, mas de saúde mental. Não ter uma doença mental não quer dizer que se esteja bem, feliz ou se esteja a aproveitar todo o potencial disponível. E era bom, para os próprios e para as sociedades que as pessoas pudessem viver melhor.

Stress, ansiedade e burnout é a trilogia dos problemas que mais atingem os trabalhadores nacionais?
O burnout é um stress ocupacional prolongado e intenso que surge em resposta a stressores interpessoais crónicos presentes no contexto laboral. Manifesta-se por sintomas de exaustão emocional, fadiga e depressão e pode conduzir profissionais anteriormente altamente motivados a situações de alienação, desumanização e apatia, conduzindo com frequência ao absentismo e ao desejo de abandonar a profissão.
Dizendo de outra maneira, há, de facto, empregos altamente stressantes, pelas próprias circunstâncias em que se desenvolvem ou por circunstâncias particulares como seja o caso da pandemia (por exemplo, os profissionais de saúde, os professores, os polícias, os cuidadores, etc). Se existem empregos mais exigentes que outros então, parece claro que os que o são por inerência têm de ter, por um lado condições de trabalho optimizadas, por outro, gratificações: económicas, de tempo ou de estatuto que sejam vividas como compensadoras. Acresce que a selecção e recrutamento destes profissionais deveria ser especialmente cuidada uma vez que existem circunstâncias pessoais que tanto podem ser amortecedoras como facilitadoras de um maior stress.
Existem muitos trabalhos que não têm, à partida, nenhum risco associado donde, a emergência de burnout decorrer linearmente das condições de trabalho, das dificuldades nas relações interpessoais e das caraterísticas dos sujeitos. Durante a pandemia, trabalhos que normalmente não se diriam como possuindo elementos stressores significativos, pela circunstância de estarem ameaçados na sua continuidade ou implicarem ritmos anómalos podem, no entanto, ter sido vivenciados desta forma.

Qual é a influência da síndrome de burnout no trabalho?
O burnout é um dos factores relevantes de absentismo. Mas também acho que se devia referir o presentismo. Não ir trabalhar ou ir, até mais tempo do que é pedido, mas procrastinando ou sendo incapaz de criatividade, reflexão, iniciativa e foco, traduz-se sempre por baixa produtividade. Claro que nem em todas as circunstâncias de abstentismo e de presentismo se pode falar de burnout. Muitas vezes são apenas formas de funcionamento desligadas quer por razões pessoais, quer como resposta à cultura da empresa a que não se adere. Em Portugal estes factores deveriam ser encarados muito seriamente já que, com horários de trabalho elevados, temos produtividades muito baixas e níveis de satisfação que deixam muito a desejar.

Há sempre a exigência de os trabalhadores serem resilientes e nunca mostrarem vulnerabilidade, mas isso não é saudável, pois não?
Julgo que tendencialmente essa perspectiva das empresas muito rígidas e exigindo performances muito estereotipadas está em desuso e é predominante em alguns sectores de atividade. Ainda assim, existem com certeza.
Deveria existir um desejável equilíbrio entre as possibilidades e características individuais e as necessidades das empresas. Este encaixe não é muito respeitado quer por ineficientes processos de recrutamento e selecção, quer pela fragilidade de muitos departamentos de Recursos Humanos que não vão fazendo o desejável acompanhamento dos colaboradores. Quase todas as pessoas, em algum momento da sua vida (por perdas, doenças, divórcios, crises pessoais e de desenvolvimento) atravessam fases menos boas, que bem acompanhadas são apenas isso mesmo: fases. Mal acompanhadas podem transformar-se em zanga permanente com a empresa e cristalizarem-se depois em contra-atitudes sistemáticas ou mesmo definitivas.

Estão hoje sensibilizadas as instituições públicas e privadas para a importância da promoção da saúde e do bem-estar em contexto laboral?
Há um longuíssimo caminho a percorrer ainda. A promoção da saúde e do bem-estar ainda está longe de ser um valor culturalmente implantado. Tradicionalmente, em todos os sectores, tudo o que tenha que ver com a promoção (da saúde, da segurança, da educação, etc.) ainda é sentido como um mau investimento. Somos muito mais responsivos a crises, ao “desenrasca” ao “remediar” do que a estratégias concertadas de criar a montante, programas que possibilitem frutos a médio ou longo prazo. Especificamente no que concerne ao trabalho, as relações entre empregadores, e trabalhadores não é das mais fáceis. Por um lado, existem muitas situações em que direitos dos trabalhadores e legislações protetoras redundam numa imposição às empresas de uma relação que já não se deseja e da qual não se pode escapar, por outro lado, como o valor do trabalho tem sido relativamente barato e a mão de obra acessível e fácil, a relação entre empresas e trabalhadores têm sido em muitos casos displicente. Para uma genuína política que contemple o bem-estar no trabalho tem de haver uma atitude geral, muito diferente da actual, no que concerne ao trabalho e ao seu valor, mas também à natureza dos vínculos contratuais e no limite em relação mesmo à importância do humano. Donde, há genericamente quase tudo a fazer.

A Direção-Geral da Saúde (DGS) publicou em Setembro do ano passado um guia técnico de “Vigilância da Saúde dos Trabalhadores Expostos a Fatores de Risco Psicossocial”. Qual a importância desta iniciativa?
É, sem dúvida importante. É um documento que especifica muitos aspectos que são relevantes e que traz para a agenda do trabalho concepções que têm todo o sentido lá estar. No entanto, a grande questão reside, do meu ponto de vista, numa mudança de mentalidades em relação ao valor do trabalho, que tem de ser visto por todos, empregados e empregadores, como uma parte importante da vida das pessoas, da sua afirmação pessoal e social. As legislações e as recomendações muitas vezes acabam em procedimentos burocráticos que não acrescentam o que deviam ao mundo profissional.

Na sua opinião, porque devem as empresas investir em saúde mental?
As empresas têm que investir na saúde mental porque não têm alternativa. Sem ela não há produtividade, não há adesão emocional nem um sentimento de pertença positivo. Ter uma boa saúde mental é o que garante o crescimento, a inovação, a criatividade, boas relações interpessoais, motivação e até alegria no que se faz. É uma boa saúde mental que possibilita que se resolvam problemas, que haja capacidade transformadora que os desafios que estão na ordem do dia pelos avanços tecnológicos, não sejam considerados ameaças.

Concorda que precisamos cada vez mais de falar sobre as emoções, mesmo em ambiente laboral?
Acho que a questão não é tanto o falar das emoções, mas o ser capaz de criar ambientes flexíveis em que se respeite a condição do humano e se promova a possibilidade de que todos reconheçam que as emoções são parte integrante do potencial de cada um. Nesse sentido reconhecer e gerir as emoções nos diversos contextos, nomeadamente nos de trabalho, é um plus, extraordinariamente vantajoso para todos.

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