Margarida Rosenbusch, CMS: Quiet Quitting. Como a crónica de um namoro que fracassou

O meu patrão desistiu de mim. Na verdade, eu também. Dele.

 

Por Margarida Rosenbusch, associada sénior de Direito do Trabalho & Fundo de Pensões da CMS

 

É um lugar comum tomarmos como certo que as leis existem para defesa dos nossos interesses. E as do trabalho, em especial, como aquelas que regulam os termos do namoro que, ambos, trabalhador e empregador, iniciam entre si. E se é desejável a definição do espaço próprio de cada um dos jovens enamorados, com a não subjugação de um ao outro, também na relação de trabalho é desejável, e mesmo necessário, que sejam definidos os termos em que, concedendo-se espaço à individualidade de cada um, empregador e trabalhador aceitem, mutuamente, desenvolver uma relação laboral.

É por isso que, como no namoro, nos oferecemos de dedicação para receber em troca de afecto, também na relação de trabalho nos comprometemos ao exercício com zelo e competência de uma actividade, que vai definida e balizada por quem nos contrata, contra a entrega da contrapartida que entendemos ser a que nos realiza.

É um namoro que se desenvolve por fases. De início, no trabalho, impõe-se vencer um “período à experiência”. Tantas vezes prolongado até à conquista do direito a pertencer ao quadro. Com esse fito, é a natureza humana que nos ensina a agradar desde o primeiro dia. A estar sempre pronto e disponível. Ocultando debilidades e constrangimentos, sobretudo os de ordem pessoal. Assim também no namoro, quando, ainda cerimoniosos, não se vêem e escondem-se defeitos. Não se exige e aceita-se o que for oferecido. A vida é em exclusivo no outro. E pode, até, haver a tendência para deixar arrefecer a necessidade da troca de palavras com os outros, incluindo os que chegaram a ser confidentes do namoro que se anunciava.

Com a cumplicidade, a liberdade aumenta. Reavivam-se as necessidades do “eu”. Sem apresentação de justificações, vamos recuperando pessoas e momentos que já antes eram exclusivamente nossos. No trabalho, também vamos aprendendo a ceder menos do nosso tempo. E, confiantes de direito, desenvolvemos a actividade contratada, mas passamos a exigir o silêncio do empregador aquando do nosso regresso a casa ou ao fim-de-semana, em que emails e telefonemas podem ficar por responder.

A separação começa a desenhar-se quando achamos que a felicidade vai unida à concretização dos sonhos. E nos deixamos dominar pela necessidade de concretização daqueles que são os nossos. Deixam de ter significado as palavras ditas, ou que passámos para o papel. O outro já não preenche. E o afecto dissolve-se.

Também no trabalho, passa a ser outra a semântica da comunicação. Os objectivos a alcançar, nossos e do empregador, deixam de ser comuns. A relação de trabalho passa a ser vivida só na medida do que nos é oferecido. Comportamentos que antes se omitiam, agora, praticam-se. E o inverso, também. Do empregador parece que passam a emanar silêncios que, mais ou menos prolongados, começam a espelhar uma indiferença que passamos a representar para quem nos contratou. Os olhares, progressivamente, também deixam de recair sobre nós. E os que devolvemos também se despem de delicadeza, e passam a tratar-se por “tu”.

O que prometia ser eterno, rompe-se. Os sonhos de um futuro em comum, dissolvem-se. É um namoro descosido e que vamos tapando com remendos, por faltar a coragem ou a força de recomeçar uma conquista. No trabalho, é a necessidade financeira que nos prende a um posto. A preguiça, aliada ao receio de termos de nos fazer valer outra vez, abdicando de todo o espaço já conquistado.

Acontece que o empregador pode saber esperar. E decida respeitar o nosso tempo à decisão de saída. E nós, que escolhemos deixar de fazer parte das decisões em que sempre participámos para fazê-lo crescer, vamos sendo preenchidos de objectivos, mas que já não têm, para ambos, qualquer propósito.

O meu patrão desistiu de mim. Na verdade, eu também. Dele. As coisas terão o sentido que lhes quisermos dar. Entendo que este é o namoro fracassado que pode dar pelo nome de quiet quitting.

 

Este artigo foi publicado na edição de Março (nº. 147) da Human Resources, nas bancas. 

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