Será que deixamos os outros ver quem realmente somos? Sejamos como os palhaços do hospital

E se tentássemos, todos nós, inspirar-nos na coragem do palhaço e não nos deixássemos intimidar pelos “nãos” que vamos ouvindo?

 

Por César Gouvêa, responsável pela área de Criação e Conteúdos da Operação Nariz Vermelho

 

Nunca como hoje se defendeu tanto o direito a ser diferente, não é? Há cada vez mais estudos e opiniões sobre como devemos aprender a aceitar aquilo que nos torna únicos. Mas quantas vezes ainda deixamos o nosso “eu” em casa antes de pegarmos na mala e no casaco e irmos para o escritório? Quantas vezes damos por nós a representar papéis, usar máscaras, tentar parecer algo que não somos para agradar aos outros? E, a certa altura, acumulamos tantas máscaras que deixamos de conseguir encontrar o caminho de volta para quem realmente somos.

“Certo, César, isso também me acontece, mas o que é que os Doutores Palhaços têm a ver com isto?” Ora é o que vou explicar:

Vamos supor que dentro de cada um de nós existem três versões: aquela que achamos que somos; aquela que gostaríamos de ser para os outros; e a percepção que os outros têm de nós. E sabemos que raramente estas versões se complementam; pelo contrário, a maioria das vezes são muito diferentes, e estão em constante mudança. Mas é aqui que inspirar-nos no modo como os palhaços vivem pode ajudar.

Por exemplo, em relação à terceira versão: o palhaço não permite que as opiniões daqueles que o rodeiam o limitem; pelo contrário, inspira-se nelas para melhorar aquilo que acha que pode melhorar. Especialmente no que diz respeito às rotinas e métodos no dia-a-dia do trabalho. Num contexto como aquele em que trabalha um palhaço de hospital – uma especialidade muito diferente dos palhaços de circo e de outros palcos –, as metodologias de trabalho são também muito diferentes e é necessária uma criatividade muito específica, da parte do artista, para ser capaz de integrar todo o imaginário exterior, do “mundo lá fora”, nos quartos e corredores dos hospitais, que, por vezes, podem parecer tão estreitos e tão pequenos aos olhos de uma criança.

Mas, através do olhar atento e escuta activa ao ambiente e às emoções de quem faz parte dele, o palhaço está presente em cada momento, de corpo, mente e espírito abertos a tudo o que possa receber das crianças, dos seus familiares e acompanhantes, e dos profissionais do hospital. Inclusive, está aberto a ouvir um “não” à hipótese de que não gostem dele. (Pelo menos no início, porque, no fim, acabará por os conseguir conquistar.)

Se o palhaço conseguir pôr o seu ego de lado quando ouve o “não” de uma criança, poderá ver nele uma janela alternativa e não uma porta a fechar-se em absoluto. Na verdade, até se vai sentir grato, porque esse “não” vai dar-lhe uma pista para o melhor caminho para comunicar com a criança. Pois às vezes, aquele “não” é só timidez, insegurança, é um “não-que-se-calhar-é-um-sim”. E se o palhaço souber adaptar-se e ouvir aquilo de que a criança precisa, sabe transformar o “não” num “sim, claro, entra e vem brincar comigo”.

E se tentássemos, todos nós, inspirar- -nos na coragem do palhaço e não nos deixássemos intimidar pelos “nãos” que vamos ouvindo? E se deixássemos de calar as ideias que queremos apresentar, que, se calhar, até podem vir a revelar-se valiosas para ajudar a equipa a chegar a uma solução?

Quanto à segunda versão de nós, aquela que gostaríamos de poder apresentar aos outros: imaginem a sensação de, ao invés de fingirmos ser algo que não somos, podermos simplesmente ser o mais autêntico e espontâneo possível para as pessoas com quem nos relacionamos; imaginem o quanto este gesto pode ser transformador e inspirador, tanto para nós como para os outros.

A maioria de nós foi criada e educada para ser a criança mais “inteligente” e mais amada da escola, o adolescente mais bem aceite no seu grupo de amigos, e o adulto mais bem-sucedido no seu ambiente de trabalho. Ao crescermos, tornamo-nos reféns desta busca incansável para nos transformarmos em seres humanos efectivos e, se não formos condecorados com a suposta “medalha de ouro”, então de nada valeu toda a nossa trajectória de vida.

Mas, como palhaços, ser bem-sucedido é muito diferente. Digamos que a máxima vitória de um palhaço é o riso de uma criança ou estar em palco perante um público. Muitas vezes, esta conquista está precisamente no fracasso, como, por exemplo, ver um palhaço escorregar numa casca de banana e cair de rabo no chão. Não sei se concordam, mas que sensação libertadora esta, mostrar-nos ao outro a partir do nosso fracasso e poder ser esta a forma mais efectiva de estabelecer uma comunicação empática e verdadeira!

E, por fim, em relação à primeira versão, à que diz respeito a como nos vemos e à nossa essência, também vos desafio a ser como um palhaço de hospital e a não ter medo de mudar. Na verdade, nós, palhaços, costumamos dizer que nos esforçamos por “morrer inacabados”, por não nos agarrarmos ao que já conhecemos e no qual nos sentimos confortáveis, porque isso não nos permite crescer, e a busca pelo crescimento pessoal é constante em nós. É com este estado de presença que vamos construindo a nossa essência, dizendo sim às mudanças que são inevitáveis, ao invés de querermos impor-nos uma definição ermética e fechada de quem somos.

E se todos abraçássemos mais esta aventura e nos permitissemos aprender algo novo a cada dia com as novas experiências que vivemos? Na Operação Nariz Vermelho, temos um Workshop do Improviso para empresas, que funciona como momento de teambuilding, em que se trabalha precisamente o não ter receio de fazer má figura, cair no ridículo, ou não se sentir integrado. É para isso mesmo que ali estamos: para dar férias ao nosso juízo interno, à seriedade com que nos apresentamos no dia-a-dia, para conseguir que o nosso cartão-de-visita se transforme na espontaneidade. E para, juntos, alcançarmos uma frequência criativa que nos permita reconhecer o ouro que é esta capacidade de brincar a “sermos nós mesmos”. Não há espaço para medo nem máscaras.

Por isso, o meu convite é este: aprenda a libertar-se do medo de ser julgado! Tire as máscaras, saiba adaptar-se ao sabor de cada novo dia e cada nova situação, como o palhaço se adapta ao ambiente de cada quarto de hospital e de cada criança que nele encontra. E aprenda a reconhecer que aquilo que o torna único pode ser precisamente aquilo que o torna uma inspiração para a comunidade da qual faz parte.

 

Este artigo foi publicado na edição de Março (nº. 147) da Human Resources, nas bancas. 

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