A lei dá ou tira argumentos às empresas para atrair e reter talento? Os especialistas são unânimes: tira!

Carla Caracol, directora de Recursos Humanos do Grupo Renascença Multimedia, Marco Ramalheiro, associado coordenador da PLMJ Advogados, e Nuno Troni, director da Randstad Professionals, foram os convidados para o debate sobre Mercado vs Lei, no âmbito da XXIII Conferência Human Resources Portugal.

 

Com moderação de Leonor Martins, directora editorial da Human Resources, o debate teve por base a pergunta: a lei dá ou tira argumentos às empresas para mais facilmente atrair e reter talento? Marco Ramalheiro defende a criatividade das empresas nesta dinâmica, mas lembra que este trabalho «não pode ser feito desligado da lei, não só numa perspectiva de viabilidade, mas também das condicionantes que a lei pode trazer». Por exemplo, é possível atrair trabalhadores através de um modelo de trabalho flexível com a componente de teletrabalho, mas é fundamental garantir que, caso um dia as circunstâncias se alterem, é possível mudar essa situação. Outro exemplo é um sistema de remunerações variável que vise premiar o talento — é preciso acautelar que isto não se torna um direito adquirido se as razões que justificam esse prémio se alterarem.

«Temos um sistema laboral muito rígido, assente numa grande desconfiança perante o empregador, em que o trabalhador é visto como a parte mais fraca, que precisa de protecção», continua Marco Ramalheiro.

Por outro lado, Carla Caracol defende que a lei apresenta constrangimentos às empresas, principalmente naquilo que tem sido uma «legislação avulsa» nos últimos tempos. A directora de Recursos Humanos do Grupo Renascença Multimédia considera que «o Legislador tem falado muito pouco em sede de concertação social, e se durante a pandemia tivemos paz social, apesar de todos os constrangimentos ao negócio, isso agora não se coloca porque esta legislação não foi previamente pensada, não houve uma relação com as expectativas no terreno, e existe uma desconfiança face às intenções dos empregadores». Carla Caracol acredita que esta realidade poderá causar constrangimentos nas organizações, visto que a legislação está «completamente desfasada da realidade do tecido empresarial». Para exemplificar, refere a lei que prevê o pagamento dos custos adicionais dos colaboradores em teletrabalho e uma série de questões operacionais que se levantam desnecessariamente, dado que durante a pandemia tudo correu bem.

«As pessoas nem o entendem como um direito, só querem ter flexibilidade», mas as empresas não podem deixar de cumprir a lei, afirma Carla Caracol. «Isto retira-nos capacidade de negociação directa com as pessoas.»

Nuno Troni considera que «a carga fiscal que temos hoje não visa tanto ajudar as empresas a dinamizar a economia, mas sim maximizar a receita fiscal». Isto faz com que haja cada vez menos flexibilidade por parte das empresas, quando é disso que elas precisam. No final, «funcionamos a duas velocidades naquilo de que a economia precisa e naquilo com que nos deparamos». O director da Randstad Professionals acrescenta que «o próprio modelo de trabalho, como as pessoas querem trabalhar, já não é o mesmo de 1980 ou 90. E a legislação cada vez mais restringe a forma de trabalhar. Temos exemplos de pessoas que não querem um contrato de trabalho, procuram outras formas de colaboração, e é muito difícil fazê-lo.»

 

Modelos de trabalho e flexibilidade

Sobre os novos modelos de trabalho, Marco Ramalheiro admite que a lei está desfasada da realidade, e lembra a rigidez de horários que existe em Portugal. O advogado dá como exemplo o banco de horas, que podia ser instituído por acordo entre o trabalhador e o empregador e que a lei alterou, deixando de ser possível esse acordo directo e sendo necessário o envolvimento de sindicatos. «É um paternalismo do Legislador», refere. Apesar disso, Marco Ramalheiro lembra que «é possível instituir um horário flexível, em que existem faixas móveis de entrada e de saída. Outro instrumento, por excelência, é a isenção de horário, em que as pessoas não têm horário, nem estão sujeitas aos limites do período normal de trabalho.» Existem outros mecanismos, como o da adaptabilidade, mas que são menos relevantes.

Já no que diz respeito ao local de trabalho, Marco Ramalheiro explica que «já existe maior flexibilidade. As duas partes podem acordar teletrabalho, misto, total, e o local de trabalho não tem de ser na casa do trabalhador, pode ser noutros locais que as partes acordem, inclusivamente no estrangeiro.»

Carla Caracol lembra que, segundo o Código de Trabalho, as empresas continuam a ter de cumprir os registos de tempos de trabalho: as entradas, as saídas, a hora de almoço e os períodos de pausa, «excepto se houver uma regulamentação colectiva que diga o contrário, que possa reduzir esses intervalos de descanso, ou se existir um pedido expresso à ACT. As pessoas não têm esta literacia legal e não percebem porque é que em casa podiam almoçar rapidamente e agora temos de voltar a aplicar a lei» no que diz respeito aos tempos de pausa.

Nuno Troni afirma que a flexibilidade é uma questão cada vez mais abordada no processo de recrutamento e uma condição para mudar de emprego. «A quantidade de horas que as pessoas trabalham é uma coisa completamente ultrapassada. Muito mais importante do que isso é a produtividade, principalmente em funções qualificadas. No entanto, continuamos a discutir estes pormenores, estas burocracias, estes entraves. As empresas perdem milhares de horas nisto, e perdemos produtividade».

 

Salários e benefícios

No que diz respeito aos benefícios, Marco Ramalheiro indica que vale muitas vezes a lógica do direito adquirido, «excepto se o empregador conseguir provar que aquele benefício foi atribuído numa base discricionária e que o trabalhador tem noção de que a qualquer momento pode ser-lhe retirado». Assim, o advogado sugere que, quando se instituem benefícios, fique muito claro, «seja em regulamento interno ou no acordo com o trabalhador», que se trata de um valor que pode ser retirado. O mesmo se aplica às remunerações variáveis, que criam nos trabalhadores a «legítima espectativa» de receber, como se fizesse parte do salário.

Carla Caracol afirma que a questão dos benefícios é cada vez mais importante. «Nos últimos processos de recrutamento, já tive a situação de serem os candidatos a colocarem as duas primeiras perguntas, sobre a possibilidade de trabalhar remotamente e o salário emocional.» Neste sentido, a directora de Recursos Humanos do Grupo Renascença Multimédia explica que a flexibilidade é um dos possíveis benefícios, mas têm de ser consideradas as limitações legais.

Sobre a competitividade de Portugal para dar resposta a estas novas exigências dos colaboradores, Nuno Troni revela que «as empresas têm muita dificuldade em gerir a sua força de trabalho. Há pessoas nas organizações que estão muito protegidas pela antiguidade e pelo custo de despedimento. Por isso, quando há a necessidade de flexibilizar, sentem-se dificuldades.» Numa competição a nível global, se por um lado, as empresas portuguesas pagam menos a algumas funções, por outro lado, existe talento de topo facilmente atraído pelo estrangeiro, precisamente devido aos salários e benefícios. Esta realidade já se notava no talento tecnológico, mas começa agora a evidenciar-se também na engenharia e nas carreiras financeiras.

Em resposta à pergunta em que assentou todo o debate, os três intervenientes concordam que a lei retira às empresas capacidade de negociação no que diz respeito à atracção e retenção de talento. Nuno Troni sugere que haja «um mínimo esforço por parte da entidade reguladora em perceber o que é uma empresa e como a economia funciona. Tudo o que tem saído está tão longe da realidade das empresas que nem sequer se percebe como se chegou ali.»

Carla Caracol conclui que «que a lei tem uma abordagem demasiado vintage. Parte-se do pressuposto que as entidades empregadoras são o mau da fita e estão ali para explorar as pessoas. Temos de mudar este mindset. E o Legislador tem mesmo de ir às empresas e perceber quais as reais necessidades dos negócios e das pessoas.»

Marco Ramalheiro concorda, e refere ser preciso mudar muito ao nível de contratos a termo, trabalho temporário, cessação, ou horários de trabalho, por exemplo. «O Legislador devia ter muito maior noção da realidade», conclui.

 

Texto: Paulo Mendonça | Foto Nuno Carrancho

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