
Igualdade por decreto
Salário igual para trabalho igual! Quem já não se cruzou, em algum momento, com este princípio e com o desafio que o mesmo pressupõe? Pois bem, entendeu o legislador que era tempo de concretizar tal princípio e promover, por decreto, a igualdade remuneratória entre homens e mulheres.
Por Gonçalo Pinto Ferreira, Sócio Responsável pela Área de Direito Laboral da Telles
Começando pelo inevitável início: no passado dia 21 de Fevereiro entrou em vigor a Lei n.º 60/2018, de 21 de Agosto. Este diploma visou justamente estabelecer medidas para a promoção da igualdade remuneratória entre homens e mulheres. Com este propósito em vista, destacam-se os seguintes objectivos:
- Adopção de Política Remuneratória transparente pelas empresas
As empresas devem assegurar a existência de uma Política Remuneratória Transparente, aplicável aos seus trabalhadores, de forma a evitar que existam ou se perpetuem casos de discriminação remuneratória entre homens e mulheres.
- Divulgação de informação estatística
No primeiro semestre de cada ano civil, o serviço competente para proceder ao apuramento estatístico do Ministério do Trabalho disponibilizará informação estatística sobre diferenças remuneratórias.
- Intervenção da Autoridade para as Condições do Trabalho
No prazo de 60 dias a contar da recepção da informação estatística em que sejam detectadas diferenças remuneratórias entre homens e mulheres, a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) notifica a empresa para apresentar um plano de avaliação das diferenças remuneratórias detetadas.
- Intervenção da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego
A partir de 21 de Agosto de 2019, qualquer trabalhador ou representante sindical poderá requerer à Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE) parecer sobre a existência de discriminação remuneratória em razão do sexo por trabalho igual ou de igual valor.
- Intervenção dos Tribunais do Trabalho
Os Tribunais do Trabalho passam a comunicar imediatamente à CITE as sentenças condenatórias por discriminação remuneratória em razão do sexo transitadas em julgado.
- Relatório Único
O Relatório Único, elaborado anualmente pelas empresas, passará a conter informação nominativa, dividida pelos dois sexos, passando o empregador a estar obrigado a disponibilizar a informação constante do Relatório Único aos trabalhadores.
Se o propósito é compreensível e até muito louvável, já maiores dúvidas se colocam quanto aos objectivos e, sobretudo, aos meios que lhe estão subjacentes.
Desde logo porque parte de um pressuposto que subverte o basilar princípio de que quem acusa, tem de provar, já que, perante uma alegação de discriminação, recairá sobre a empresa a responsabilidade de demonstrar que tem uma Política Remuneratória Transparente. No fundo, cabe à empresa fazer uma prova pela negativa, ou seja, demonstrar que não discrimina. Se provar um facto já por si só é um desafio, imagine-se provar um “não-facto”…
Por outro lado, vislumbra-se já o desafio que emerge da necessidade de existir informação fidedigna e actual que permita avaliar correctamente as alegadas discriminações. Desafio tanto maior quanto se pretende objectivar algo que tem uma essência também naturalmente subjectiva. Como serão percepcionadas as características próprias de cada mercado? Como serão julgadas a valorização e avaliação que cada empresa faz dos seus recursos e do seu negócio? Como serão tidas em conta até a competitividade e a concorrência? De igual modo, que recursos terá a ACT e a CITE para fazer esta avaliação e de que forma o farão?
Muitas são as dúvidas. Mas talvez o maior de todos os desafios resida em não se permitir que se confunda discriminação com diferenciação. Porque a diferenciação é geradora de evolução, premiando a qualidade e reconhecendo o mérito, incentivando a produtividade e a busca de know-how, não a preservar e salvaguardar seria um estrondoso erro.
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