Os jovens, o confinamento e algumas questões para reflectir

«Todos temos de gerir seguranças e inseguranças e aprender a cada dia o que é melhor para nós, para todos os outros e para o bem comum, e por isso ficam algumas questões sobre as quais deveríamos reflectir.»

 

Por Isabel Moço, professora da Universidade Europeia

 

Portugal é um país de brandos costumes, que tantas vezes acanhadamente acredita na boa vontade e na ideia do bem comum, sem que grandes esforços sejam desenvolvidos nesse sentido – quer pelas pessoas, instituições ou mesmo pelo Estado.

Portugal é um país de liberdades tardias, onde ainda se notam as marcas das conquistas a ferro e fogo das últimas décadas, mas as liberdades se alinham sempre, também, pelos limites dos deveres.

Portugal é um país envelhecido, sem políticas ou estratégias sólidas para apoiar os extremos da população – os velhos e os mais jovens. Os “do meio” também não, mas esses têm de se desenrascar. Mas Portugal é também um país de arte e engenho, de astúcia, de força e determinação, de inconformismo e rebeldia que nos marca a tez. E é neste cenário, em que o vento até corria a favor, que surge um vírus.

Crianças, jovens, adultos e velhos perderam parte da sua liberdade, da sua presença social, da possibilidade de cruzar olhares, de abraçar, de rir e beijar. O impacto, a todos os níveis, desde o pessoal ao global, foi brutal, e fomos aprendendo a viver uma circunstância para a qual ninguém estava preparado, adaptando as nossas rotinas – e parece que valeu a pena. A recompensa chegou ao mesmo tempo que as Nações Unidas apelavam a comportamentos de cidadania, de promoção da saúde e do bem-estar, do voluntariado e inovação, e foi-nos permitido retomar algumas liberdades. Pudemos voltar a sair, e o medo parece ter-se transformado em maior vontade de vida social – sobretudo nos mais jovens, naturalmente mais descontraídos, mais suscetíveis de adoptar comportamentos de maior risco e em que “o aqui e agora” dita a vida.

Muito se tem falado da atitude e do comportamento dos jovens, a propósito da forma como “desconfinam”, como vivem, colocam-se em risco e acabam por colocar outros também. Importa perceber – a par das estatísticas dos novos surtos da pandemia que apontam um crescimento significativo de casos nestas faixas etárias – o que está na base destes comportamentos. Nenhum de nós se esqueça que o ser jovem é também uma condição de vida, tantas vezes, mostra-o a história, o motor de grandes mudanças nas sociedades.

As faixas mais jovens da nossa população viveram com pouca ou quase nenhuma experiência de privação face ao que desejam ou procuram. Se isso tem aspectos positivos, também acarreta alguma impreparação para lidar com essa mesma privação (e provação), o que por vezes resulta em comportamentos mais efusivos de libertação. Privados de liberdades, regista a história que foram precisamente as faixas etárias mais jovens aquelas que mais efusivamente combateram e defenderam valores e interesses. Não servem estas palavras para desagravar comportamentos socialmente irresponsáveis, sejam de que tipo forem e procurem estes dar resposta ao quer que seja. Também não podemos considerar as faixas etárias mais jovens como um todo uno e homogéneo

. Registe-se também que foram muitos os jovens que se mobilizaram em grupos de apoio e responsabilidade social, quando, por exemplo, se voluntariaram para apoiar populações mais vulneráveis.

Todos temos de gerir seguranças e inseguranças e aprender a cada dia o que é melhor para nós, para todos os outros e para o bem comum, e por isso ficam algumas questões sobre as quais deveríamos reflectir:

  • Num país identificado pela OCDE como o quinto que mais consome ansiolíticos, e em cenários nos quais é imperativo driblar a ansiedade, como se faz prevenção em faixas etárias que, como acima se refere, raramente se viu privada do que quer que seja e não tem ainda experiência e maturidade para se autogerir?
  • De que modo, e quando, pessoas, famílias e comunidades foram alertadas e preparadas para os impactos das alterações dos ritmos de vida – por exemplo, o sono, os consumos, as relações?
  • Quantos jovens, com o apoio das famílias, dos pares ou das instituições a que estão ligados, foram encaminhados no sentido de “aproveitarem” a oportunidade que a pandemia trouxe, em termos de tempo, mas também de oferta, para investirem no desenvolvimento das suas competências?
  • Os mais jovens, tantas vezes assinalados como “viciados e refugiados” nas tecnologias, foram realmente aqueles que mais e melhor as usaram para suprir algumas necessidades trazidas pelo confinamento?
  • Quantos jovens mantiveram as suas rotinas em confinamento, quantos as alteraram parcialmente e quantos as alteraram profundamente?

Não se visa com este texto desagravar alguns comportamentos de risco que se têm registado, mas também não se pode cair na falácia de que os jovens são uns grandes irresponsáveis que põem em causa tudo e todos. São fases de vida de expectativas, de consolidação de valores e posturas, tão determinantes que marcam definitivamente o futuro das sociedades.

Mais do que apontar o dedo e criticar, é preciso que se perceba porque saem em grupos, porque fazem festas, porque têm consumos exagerados, porque têm atitudes de rebeldia e contestação e porque não se limitam a seguir o que lhes é indicado – registe-se novamente que isto não serve de justificação a qualquer tipo de comportamento irresponsável e condenável. Talvez tão só porque querem mais e melhor, porque não jogam para perder e a experiência ainda não lhes permite ponderar todas as consequências.

E recorda-me uma velha estória de infância que um leão jovem e fogoso encontrou um pedaço de carne fresca. Não querendo partilhá-la, levou-a para um sítio recatado onde a poderia comer sozinho. Pelo caminho teve de atravessar um rio, e ao ver a carne reflectida na água, aquele pedaço parecia maior que o que levava na boca. Largou o pedaço que levava preso nos dentes para apanhar um maior, e a corrente do rio levou a carne. São apenas jovens.

 

 

 

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